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Oh! criador e destruidor, Vós que manteis e dais fim, Que à luz do sol acompanhais os pássaros e os folguedos das crianças E que à meia-noite dançais com os cadáveres nos crematórios, Vós, Xiva, escuro e terrível Bhairava, Vós, Semelhança e Ilusão, Tudo e Nada, Sois o Senhor da Vida e por isso vos trouxe flores, Sois o Senhor da Morte e por isso vos trouxe o meu coração, Esse coração que é agora a Vossa Pira E onde a minha ignorância e o meu ego serão consumidos pelas chamas, Para que Vós, Bhairava, possais dançar sobre as cinzas. Para que possais dançar, Senhor Xiva, num canteiro de flores E para que eu possa Vos acompanhar nessa dança.

Levantando os braços, a mocinha fez um gesto que traduzia o êxtase devocional de uma centena de gerações de adoradores dançarinos e, depois, fazendo meia-volta, se dirigiu na penumbra para seu lugar. Alguém gritou: Shivanayama. Murugan resmungava com desprezo à medida que o refrão ia sendo repetido pelos jovens. Shivanayama, Shivanayama… O velho sacerdote começou a entoar outra passagem das Escrituras. No meio da declamação, um pequeno pássaro cinzento de cabeça vermelha voou através de uma das rótulas, agitou nervosamente as asas em torno das lâmpadas do altar, chilreou alto, indignadamente, e depois saiu como uma flecha.

Os cânticos prosseguiram e, após atingirem um clímax, terminaram com uma oração sussurrada, na qual se pedia a paz: Shanti, Shanti, Shanti.

O sacerdote voltou-se novamente para o altar, apanhou uma longa vela, que acendeu numa das velas colocadas acima da cabeça de Xiva, e começou a acender as outras sete que pendiam de um profundo nicho situado abaixo da laje onde estava o dançarino.

A chama das velas, refletindo-se em convexidades de metal polido, revelou outra estátua — a de Xiva e Parvati, onde o Arqui-ioguim aparece sentado, elevando com dois dos seus braços o tambor e o fogo simbólicos, enquanto com os outros dois acaricia a deusa Amorosa. Esta, com seus pares de braços e pernas, o abraça e cavalga nessa eterna representação em bronze. O velho acenou com a mão. Dessa vez foi um rapazinho musculoso e de pele escura que se encaminhou para a zona iluminada. Curvando-se, pendurou uma grinalda em torno do pescoço de Parvati. Feito isso, deu mais uma volta no longo colar de flores e colocou uma segunda grinalda (dessa vez de orquídeas brancas) sobre a cabeça de Xiva.

— Cada um representando os dois — disse o rapazinho.

— Cada um representando os dois — repetiram os outros em coro.

Prosseguiu então:

— Oh, Tu que partiste, que partiste para outra terra e lá ficaste! Oh, Tu, luz e Tu outra luz, Tu libertação nascida de libertação, compaixão nos braços da infinita compaixão!

— Shivanayama.

Sob profundo silêncio, o rapazinho voltou para seu lugar.

Vijaya levantou-se e começou a falar:

— Perigo — disse ele. — Perigo — repetiu. — Perigo que, mesmo sendo deliberado, foi aceito com alegria. Perigo compartilhado com um amigo, com um grupo de amigos. Compartilhado íntegra e conscientemente. Essa co-participação no perigo passou a ser uma ioga. Dois amigos amarrados por uma corda na encosta de uma rocha. Outra vezes, três e mesmo quatro. Cada um tendo consciência da força dos seus músculos, da sua habilidade, do seu medo e da sua capacidade para vencê-lo. Cada um tendo consciência da existência dos outros, preocupado com eles, fazendo as coisas corretamente para que nada venha a comprometer a segurança dos mesmos. A vida no seu mais alto tom de tensão física e mental. Vida que a ameaça constante da morte torna ainda mais rica, mais inestimavelmente preciosa. Mas à ioga do perigo segue-se a ioga da chegada ao cume, a ioga do repouso e da lassidão, a ioga da receptividade total, a ioga que consiste em aceitar as coisas como nos são dadas, sem as censuras de uma mente moralista e ocupada, sem que nenhuma idéia de segunda mão nem tampouco nenhum desejo fantasioso sejam adicionados. Sentado, com os músculos relaxados e a mente aberta à luz do sol, às nuvens, à distância e ao horizonte, se chega a entender aquela coisa informe, sem palavras. Não-pensada. No silêncio do cume, longe da excitação da vida diária, consegue-se pressenti-la, aprofundá-la, tolerá-la.

Chegou a hora da descida, da segunda parte da ioga do perigo. A tensão e a consciência da vida serão plenamente renovadas, enquanto, suspenso por uma corda, você se mantiver num equilíbrio instável, à beira da destruição. Ao atingir o sopé do abismo, você se liberta da corda e se dirige a passos largos através dos caminhos rochosos, em direção às primeiras árvores. De repente, você está na floresta, onde se iniciará uma outra espécie de ioga, a ioga da selva, na qual, todos os sentidos têm que estar em permanente estado de alerta. A vida da selva em toda a sua plenitude de beleza e de podridão sórdida e rastejante. E onde se observam, em toda a ambivalência dramática, orquídeas e centopéias, sanguessugas e pássaros, sugadores de néctar e sugadores de sangue. A vida impondo ordem ao caos e à feiúra. A vida parecendo repetir os milagres do nascimento e do crescimento. A autodestruição parecendo ser seu único objetivo! Beleza e horror. Beleza e horror — repetiu, continuando em seguida:

— E, de repente, como se tivesse chegado de uma expedição às montanhas, você tem consciência de que há uma reconciliação. Mais do que uma simples reconciliação: fusão e identidade. Beleza nascida do horror na ioga da selva. A vida reconciliada com a permanente ameaça da morte, na ioga do perigo. A identificação do vazio e da auto-proteção, no sabá da ioga do cume.

Fez-se o silêncio e Murugan bocejou ostensivamente. O velho sacerdote acendeu outro bastão de incenso e, murmurando, agitou-o em frente ao dançarino e depois em torno da imagem do namoro cósmico entre Xiva e a deusa.

— Respirem profundamente e, enquanto respirarem, procurem sentir o cheiro do incenso — disse Vijaya. — Concentrem-se inteiramente nisso. Sintam-no como a um fato inefável e indescritível que ultrapassa a razão e por isso não pode ser explicado.

Conheçam-no como a um mistério. Perfume, mulheres e oração: eram as coisas que Maomé amava acima de tudo. As inexplicáveis sensações trazidas pelo cheiro do incenso, por uma pele que se toca, pelo sentimento amoroso e, dominando tudo, mistério dos mistérios, a plenitude do ser único. O Vazio que é tudo, a Semelhança presente em todos os instantes e em seus mínimos detalhes. Respirem! Respirem! — disse num murmúrio final, enquanto se sentava. — Respirem!

— Shivanayama — murmurou o velho sacerdote em êxtase.

O dr. Robert levantou-se e caminhou em direção ao altar.

Parando a meio caminho, voltou-se e acenou para Will Farnaby.

— Venha sentar-se a meu lado — disse em voz baixa, quando Will estava próximo a ele. — Gostaria que observasse as fisionomias.

— Não irei atrapalhar?

O dr. Robert balançou a cabeça e, juntos, começaram a subir as escadas que davam acesso ao altar, sentando-se lado a lado antes de atingirem o último degrau, num local onde a escuridão, quebrada pela luz das velas, formava uma zona de penumbra. O dr. Robert começou a falar calmamente a respeito de Xiva-Nataraja, o Senhor da Dança.

— Olhem esta imagem. Observem-na com os olhos que o moksha lhes deu. Vejam como respira e pulsa. Vejam como seu fulgor se torna cada vez mais intenso! Dançando sem parar, dançando perpetuamente e eternizando o momento presente. Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos.