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Perscrutando aquelas fisionomias que olhavam para o alto, Will observou em muitas delas as alvoradas iluminadas de deleite, reconhecimento, compreensão, os sinais de curiosa adoração que as fazia tremer como se estivessem nos limites do êxtase e do terror.

— Observem cuidadosamente — insistiu o dr. Robert. — Muito cuidadosamente.

Após um longo silêncio, repetiu:

— Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos. Em todos os mundos! Principalmente no mundo da matéria. Olhem o grande halo, cercado pelos símbolos do fogo, dentro do qual o deus está dançando. Aí está para defender a natureza, para defender o mundo da massa e da energia. Dentro dele, Xiva Nataraja dança a dança infinita, a dança apropriada à morte. É o seu lila, sua diversão cósmica. Como se fosse uma criança que brinca pelo simples prazer de brincar. Mas essa criança é a ordem das coisas. Seus brinquedos são as galáxias, o espaço infinito é o seu pátio de recreio, e entre cada um dos seus dedos há um intervalo de milhares de milhões de anos-luz. Observem— no lá no altar. A imagem foi feita pelo homem e não passa de uma figura de cobre, de um metro cvinte de altura. Mas Xiva-Nataraja preenche o Universo, é o próprio Universo. Fechem os olhos e vejam-no altaneiro dentro da noite, vejam como distende seus braços infinitos e o modo como seus cabelos desordenados esvoaçam sem cessar. Nataraja brincando entre as estrelas e os átomos. Ele também está brincando no interior de cada ser vivo, de cada criatura dotada de sensibilidade, de cada criança, de cada homem e de cada mulher. Brinca peló prazer de brincar. Mas nesse momento o pátio o sente e a pista de danças está capacitada a suportar o sofrimento. Para nós, essa dança sem objetivo parece uma espécie de insulto. O que realmente gostaríamos de ter era um deus que nunca destruísse o que tivesse criado. E, se o sofrimento e a morte tivessem de existir, deveriam ser distribuídos por um deus pleno de eqüidade, que punisse os maus e premiasse os bons com a felicidade eterna. Na realidade, o bom é atingido e o inocente sofre. Deveria existir um deus que nos compreendesse e nos trouxesse conforto. Mas Nataraja se limita a dançar. Brinca imparcialmente com a morte e com a vida, com todas as coisas más e com todas as coisas boas. Na mais alta das suas mãos direitas, ele segura o tambor que põe em movimento o ser que existe no Nada. E o tambor rufia o toque cósmico da alvorada. Olhem agora para a mais alta das suas mãos esquerdas. Brande o fogo com o qual tudo que foi criado é imediatamente destruído. Dançando de um modo, cria a felicidade! De outro, cria a dor, o terrível medo, a desolação. Decide-se a saltar e a pular. Num pulo, a saúde perfeita. Num salto um pouco mais largo, eis o câncer e a senilidade. Com outro salto, afasta-se da plenitude da vida e cai no Nada. Do Nada, salta novamente em direção à Vida. Para Nataraja tudo é brincadeira. A brincadeira é seu eterno e inútil objetivo. Ele dança e a dança é seu maha— sukha, sua infinita e eterna bênção. Eterna bênção!

O dr. Robert repetiu, em tom de dúvida:

— Eterna bênção? — Balançou a cabeça e prosseguiu: — Para nós a bênção não existe. O que existe é a oscilação entre a felicidade e o terror. A essa oscilação vem se acrescentar um sentimento de ultraje, toda vez que pensamos que nossas dores e nossos prazeres, nossa vida e nossa morte nada mais são que uma parte da dança de Nataraja. Pensemos com calma no que acabei de dizer.

À medida que os segundos passavam, o silêncio se tornava mais profundo. De repente, uma das mocinhas começou a soluçar. Saindo de onde estava, Vijaya ajoelhou-se a seu lado e colocou uma das mãos sobre seu ombro. Os soluços cessaram.

— Sofrimento e doença, velhice, decrepitude e morte — continuou o dr. Robert. — Eu lhes mostro o sofrimento. Mas isso não foi a única coisa que Buda nos mostrou. Ele também nos mostrou o fim do sofrimento.

— Shivanayama — gritou o sacerdote em triunfo.

— Abram bem os olhos e olhem para o Nataraja que está no altar. Observem-no detalhadamente. Em sua mão superior direita, como vocês já viram, ele segura o tambor que chama o mundo para a vida, e em sua mão superior esquerda segura o fogo da destruição. Vida e morte, ordem e desintegração, imparcialmente distribuídas. Agora, olhem para o outro par de mãos de Xiva. A mão inferior direita está erguida e com a palma voltada para fora. Qual a significação desse gesto? Ele quer dizer: «Não tenha medo, tudo está bem». Mas como pode alguém se impedir de ter medo? Como fingir que o mal e o sofrimento sejam coisas certas, quando a evidência de que são erradas é tão óbvia? Nataraja tem a resposta. Agora, observem sua mão inferior esquerda e vejam que com ela está apontando para os pés. E os pés, que estão fazendo? Olhem com cuidado e verão que com o pé direito ele pisa numa pequena e repelente figura subumana: o demônio Muyalaka, que, embora sendo um anão, é dotado de um imenso poder de malignidade. Muyalaka corporifica a ignorância, representa a ganância e o egoísmo exagerado. Esmaguem-no, quebrem-lhe as costas! É exatamente isso que Nataraja está fazendo. Esmagando o pequeno monstro sob seu pé direito. Convém que observem que não é para o pé direito que ele está apontando com o dedo, e sim para o esquerdo. O pé que, no ato de dançar, ele está levantando do chão. E por que aponta para ele? Por quê? Aquele pé erguido, aquele desafio dançante à força da gravidade é o símbolo da sublimação, do moksha, da libertação. Nataraja dança ao mesmo tempo em todos os mundos: no mundo da física e da química, no mundo da rotina, do demasiadamente humano e, finalmente, no mundo da Semelhança, da Inteligência, da Luminosidade. E agora — prosseguiu o dr. Robert, após um momento de silêncio — quero que vocês observem a outra estátua, a representação de Xiva e a deusa. Olhem para aquela pequena gruta iluminada onde elas estão. Agora, fechem os olhos e tornem a abri-los para vê-las resplandecentes, vivas, glorificadas! Quanta beleza! Que profunda significação está contida na ternura que se vê em ambas! É a sabedoria daquela experiência de reconciliação e de fusão espiritual que transcende a tudo que de sábio se possa dizer! Eternidade no amor com o tempo. A unidade contraindo núpcias com a pluralidade. É o relativo tornado absoluto graças à sua fusão com a Unidade. É a identificação de nirvana com samsara; é a manifestação temporal, corporal e sentimental da natureza de Buda!

— Shivanayama! — O velho sacerdote acendeu outro bastão de incenso e, suavemente, uma sucessão de cadências prolongadas, começou a cantar alguma coisa em sânscrito.

Nas faces jovens que tinha à sua frente, Will pôde Observar que os traços revelavam a serenidade com que escutavam, o sorriso quase imperceptível com que saudavam uma súbita visão interior, uma revelação de verdade e beleza.

Nesse momento, Murugan, protegido pela obscuridade, descuidadosamente sentado e encostado numa pilastra, enfiava o dedo em seu belo nariz grego.

— Libertação — começou novamente o dr. Robert. — O fim do sofrimento. Deixem de ser o que ignorantemente pensam ser e se transformem no que realmente são. Por um pequeno período, graças ao moksha, saberão o que é realmente ser. Saberão também o que têm sido até agora. Que bênção eterna! Mas esse eterno é transiente como tudo o mais. Passará como todas as coisas. E quando isso ocorrer, que é que farão dessa experiência? Que farão com todas as experiências idênticas que o moksha lhes trará nos anos que estão por vir? Será que se limitarão a desfrutá-las, do mesmo modo como apreciam um espetáculo de fantoches, voltando depois às suas ocupações como se nada tivesse acontecido? Será que voltarão a se comportar como os tolos delinqüentes que imaginam ser? Ou será que, após vislumbrarem, se dedicarão ao trabalho radicalmente diferentes do que eram, passando a ser o que realmente são? Tudo aquilo que nós, os mais velhos, lhes podemos ensinar, tudo aquilo que o sistema social de Pala pode fazer por vocês se resume em ensinamentos técnicos e oportunidades. Tudo aquilo que o moksha pode lhes proporcionar ocasionalmente é uma sucessão de vislumbres de clarividência e de graça libertadora. Cabe a vocês decidir se vão colaborar e se vão aproveitar essas oportunidades. Porém tudo isso pertence ao futuro. No momento, tudo o que têm a fazer é seguir o conselho do pássaro mainá: «Atenção». Fiquem atentos, e gradual ou subitamente terão consciência dos grandes fatos primordiais que se escondem atrás desses símbolos que vêem no altar.