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— Se você soubesse o trabalho que dão os livros aqui neste clima! — dizia ela. — O papel apodrece, a cola se derrete, as encadernações não resistem, os insetos os devoram. A literatura é realmente incompatível com os trópicos.

— Se formos acreditar no seu velho rajá, a literatura também é incompatível com vários outros aspectos locais. É incompatível com a integridade humana, com a verdade filosófica, com a sanidade individual e com um sistema social condigno. É incompatível com tudo, exceto o dualismo, a demência criminosa, as aspirações impossíveis e os sentimentos de culpa desnecessários. — Sorrindo ferozmente, Will continuou: — Mas não se preocupem com isso, o coronel Dipa endireitará tudo. Depois que Pala for invadida e salva pela guerra, pelo petróleo e pela indústria pesada, vocês terão, sem a menor dúvida, uma Idade de Ouro na literatura e na teologia.

— Gostaria de poder rir, mas é bem provável que você esteja inteiramente certo — disse Vijaya. — Tenho um desagradável pressentimento de que os meus filhos crescerão para ver a realização da sua profecia.

Deixando o jipe estacionado à entrada da aldeia, entre um carro de bois e um caminhão japonês inteiramente novo, continuaram o caminho a pé. Entre casas cobertas de sapé construídas em jardins sombreados de palmeiras, mamoeiros e árvores de fruta-pão, a rua estreita ia dar na praça do mercado central. Parando, Will apoiou-se no bordão de bambu e olhou à sua volta. Num dos lados da praça se erguia uma verdadeira obra-prima do rococó oriental! A fachada de estuque cor-de-rosa, tendo um mirante em cada um dos seus quatro cantos, dava a impressão de ser a prefeitura local. À sua frente, no lado oposto da praça, via-se um pequeno templo de pedra rosada tendo uma torre central, na qual, dispostas em várias fileiras, uma série de figuras esculpidas contava as lendas do progresso de Buda desde sua infância mimada até se transformar em Tathagata. Entre esses dois monumentos, a maior parte do terreno era coberta por uma enorme figueira-de-bengala. Ao longo de corredores sombreados e sinuosos, enfileiravam-se as barracas de um grupo de vendedores de ambos os sexos. Atravessando fendas das abóbadas verdes, os longos e curiosos raios de sol mostravam, aqui, potes de água amarelos e pretos; ali, uma pulseira de prata, um brinquedo de madeira pintada e um pedaço de fazenda estampada. Adiante, uma pilha de frutas, um corpinho de menina alegremente estampado com flores, o lampejo de olhos e dentes de alguém que sorri e o saudável dourado de um torso nu.

— Todos parecem tão saudáveis — comentou Will, enquanto caminhavam entre as barracas e à sombra da grande árvore.

— Sua aparência é saudável simplesmente porque são realmente saudáveis — disse Mrs. Rao.

— E felizes, para variar.

Pensava nos rostos que vira em Calcutá, em Manilha, em Rendang-Lobo — os mesmos rostos que também podiam ser vistos diariamente em Fleet Street e no Strand.

— Mesmo as mulheres — comentou, olhando cada rosto —, mesmo as mulheres parecem felizes.

— Elas não têm dez filhos — explicou Mrs. Rao.

— Do lugar de onde venho, elas também não têm dez filhos — disse Will. — Apesar disso… «Sinais de fraqueza, sinais de infelicidade.» — Fazendo uma pausa, olhou da face de uma vendedora de meia-idade que pesava fatias de fruta-pão secas ao sol para a de uma jovem mãe que carregava seu bebê numa sacola presa às costas. — Há uma espécie de esplendor — concluiu.

— Graças à maithuna — disse triunfalmente Mrs. Rao. — Graças à ioga do amor.

Em seu rosto brilhava um misto de fervor e de orgulho profissional.

Enquanto andavam, deixaram uma faixa ensolarada e quente e, subindo uma escadaria de degraus bastante desgastados, atingiram a obscuridade de um templo. Um gigantesco Bodhisattva dourado surgiu da escuridão. No meio do cheiro de incenso e de flores murchas escutava-se, vindo de algum lugar atrás da estátua, um adorador invisível a murmurar uma ladainha sem fim.

Silenciosamente, de pés descalços, uma criança entrou apressada por uma porta lateral. Sem prestar atenção aos adultos, subiu até o altar com a agilidade de um gato e depositou um ramo de orquídeas na mão estendida da estátua. Feito isso, olhou para a enorme face de ouro, murmurou algumas palavras, fechou os olhos por um momento e murmurou novamente. Desceu do altar, cantando para si mesma, e saiu pela mesma porta por onde entrara.

— Encantadora — disse Will, enquanto a via afastar-se. — Não poderia ser mais graciosa. Contudo, que é que uma criança daquela pensava estar fazendo? Que espécie de culto religioso era aquele?

— Ela pratica a variedade local do budismo mahayana e também um pouco de xivaísmo.

— E vocês, intelectuais, encorajam essas práticas?

— Não encorajamos nem desencorajamos. Apenas aceitamos. Aceitamos como se aceita a teia de aranha ali na cornija. Devido à natureza das aranhas, suas teias são inevitáveis, e devido à natureza dos seres humanos as religiões também o são. Às aranhas não se pode impedir de fazer armadilhas para moscas. Os homens não conseguem deixar de fabricar símbolos. E o cérebro humano só serve para transformar em símbolos manejáveis o caos de uma determinada experiência. Algumas vezes os símbolos correspondem quase que exatamente a alguns dos aspectos da realidade exterior que se escondem atrás da nossa experiência. Somente então adquire consciência e bom senso. Outras vezes ocorre o oposto: os símbolos quase não têm ligação com a realidade exterior. Desse modo, temos a paranóia e o delírio. Freqüentemente existe uma mistura realística e em parte fantástica. E isso é a religião. Boa religião ou má religião, tudo depende da mistura do coquetel. Por exemplo, na espécie de calvinismo em que o dr. Andrew foi criado, misturou-se uma porção mínima de realismo em sua coqueteleira cheia de fantasias malignas. Em outros casos, a mistura é mais benigna. A proporção pode ser de cinqüenta, sessenta por quarenta e de até mesmo setenta por trinta, em favor da verdade e da decência.

Will concordou com um movimento de cabeça e disse:

— Realmente, oferecer orquídeas brancas a uma imagem que representa a compaixão e o esclarecimento parece bastante inofensivo. E, depois do que vi ontem, estou preparado para falar em favor das danças cósmicas e das cópulas divinas.

— Lembre-se de que isso não é compulsório — disse Vijaya. — Mas a todos é dada a chance para irem mais além. Você perguntou o que aquela criança pensava estar fazendo. Eu lhe direi: com uma parte da sua mente, ela supõe estar falando com alguém, uma pessoa enorme e divina que pode ser bajulada com orquídeas e que, no entanto, lhe dará o que ela deseja. Todavia, ela já tem idade bastante para que lhe tenham falado acerca dos símbolos mais profundos que estão representados na estátua de Amitabha. Também já deve ter ouvido falar das experiências que deram origem a esses símbolos. Disso.se deduz que, com a outra parte da sua mente, ela sabe muito bem que Amitabha não é uma pessoa. Sabe também (porque já lhe foi explicado) que, se as preces algumas vezes são atendidas, é porque neste nosso estranho mundo psicossomático os desejos têm tendência a se realizarem, quando neles nos concentramos. Já lhe ensinaram que esse templo não é mais a casa de Buda, mas apesar disso ainda gosta de imaginar que é. Sabe que não é um diagrama da sua própria mente inconsciente, um cubículo escuro com lagartixas andando de cabeça para baixo pelo teto e com baratas em todas as gretas. Todavia, no meio da escuridão povoada de vermes está a Sabedoria. E essa criança está fazendo alguma coisa além disso: de maneira inteiramente inconsciente, está aprendendo uma lição a seu próprio respeito. Já lhe foi dito que, se conseguir deixar de se sugestionar, talvez descubra que sua mente pequena e ocupada é também uma Mente com M maiúsculo.