— Será porque a distância nos encanta a vista?
— Não. É porque lhe empresta realidade. A distância nos lembra que no universo existem muitas outras coisas além das pessoas, e que para os seres humanos existe muito mais além do que outros tantos seres humanos. Faz-nos lembrar que dentro de nosso cérebro existem espaços tão grandes como os que vemos no mundo que nos rodeia. A experiência da distância interior e exterior, da distância no tempo e no espaço, é a primeira e fundamental experiência religiosa. Oh, morte em vida, os dias que não mais existem! — citou. — Oh, lugares! O infinito número de lugares que não são este lugar! Prazeres passados, infelicidades e introspecções passadas: todas tão intensamente vivas em nossas memórias e, no entanto, todas mortas, mortas sem a esperança de ressurreição! E, no vale, a povoação que, apesar da distância, vemos com nitidez no meio das sombras é tão real e tão incontestável quanto isolada e fora de alcance. Um quadro como este é a prova da capacidade humana de aceitar todas as mortes em plena vida, todas as ausências sorvidas que envolvem cada presença. Para mim, a pior faceta dessa arte não-representativa repousa na sistematização das duas dimensões e na recusa de levar em conta a experiência universal da distância. Em matéria de cores, um quadro de expressionismo abstrato pode ser considerado uma obra de arte. Mas pode também vir a ser encarado como se fosse uma simples glorificação de um dos borrões do teste de Rohrschach. Todos podem encontrar nele uma expressão simbólica dos seus próprios temores, luxúrias, ódios e sonhos. Será que alguém pode vir a descobrir, num desses quadros expressionistas, coisas que transcendem o humano e que só descobrimos em nós mesmos quando a mente se defronta com as distâncias exteriores da natureza que nos circunda? Será que alguém consegue analisar simultaneamente as distâncias interiores e exteriores através de uma paisagem como a que estamos vendo agora? Tudo que sei é que em suas abstrações eu não encontro as mesmas realidades que são reveladas aqui, e tenho dúvidas de que alguém consiga encontrar. Por esta razão, considero o seu expressionismo moderno sem objetivo e tão fundamentalmente irreligioso. Devo acrescentar, ainda, que mesmo o melhor deles é profundamente enfadonho e vulgar.
— Costuma vir sempre aqui? — perguntou Will após uma pausa.
— Sim. Todas as vezes que sinto vontade de meditar em grupo, em vez de sozinho.
— Isso se dá com muita freqüência?
— Acontece, em média, uma vez por semana. Algumas pessoas preferem fazê-lo com maior freqüência, outras muito raramente, havendo também aquelas que nunca o fazem. Isso depende do temperamento de cada um. Nossa amiga Susila, por exemplo, necessitando de uma dose maior de solidão, raramente vem até aqui, enquanto Shanta, minha esposa, gosta de vir até aqui quase que diariamente.
— Eu também — disse Mrs. Rao. — Mas era de se esperar — acrescentou com uma risada. — As pessoas gordas apreciam a companhia de outrem, mesmo quando estão meditando!
— A senhora utiliza este quadro para meditar? — perguntou Will.
— Não medito nele. Dele retiro a meditação, se é que você entende o que quero dizer. Para ser precisa, medito paralelamente a ele. Eu e os outros o olhamos e isso nos lembra quem somos e quem não somos, e o modo pelo qual aquilo que não somos pode vir a se transformar no que somos.
— Existe alguma ligação entre o que a senhora acaba de dizer e o que vi lá no templo de Xiva?
— Claro que há. O moksha e a meditação nos levam ao mesmo lugar.
— Então, por que dar-se ao trabalho de meditar?
— Isso seria o mesmo que perguntar: «Por que dar-se ao trabalho de comer?»
— Mas, de acordo com sua teoria, o moksha é alimento!
— É um banquete! — disse enfaticamente. — Justamente por essa razão deve haver meditação. Não se pode ter banquetes todos os dias, pois são muito copiosos e demasiado longos. Além do mais, os banquetes nos são proporcionados por um fornecedor e não se toma parte nos seus preparativos. Nossa alimentação diária é preparada por nós e o moksha entra nela como um prazer ocasional.
— Em termos teológicos, o moksha nos prepara para a recepção de graças imerecidas: as visões pré-místicas ou as experiências místicas propriamente ditas. A meditação é um modo pelo qual se coopera com essas graças imerecidas — disse Vijaya.
— Como assim?
— Cultivando um estado de espírito que permita que esses clarões de êxtase ofuscante se transformem numa «iluminação» permanente. É necessário também que cada um se conheça até o ponto em que não possa mais ser impedido pelo subconsciente de fazer as coisas horríveis, absurdas e estultas que são feitas com tanta freqüência.
— E isso ajuda alguém a ser mais inteligente?
— Não mais inteligente em relação à ciência ou à argumentação lógica, e sim no que diz respeito aos níveis mais profundos das experiências concretas e das relações pessoais.
— Mais inteligente nesse nível, embora se possa ser muito pouco dotado em outros níveis — disse Mrs. Rao, batendo com a mão no alto da cabeça. — Sou parva demais para entender as coisas que o dr. Robert e Vijaya sabem: genética, bioquímica, filosofia etc. Também não tenho dotes para a pintura, a poesia ou para o teatro. Não possuo talentos ou habilidades. Assim sendo, deveria me sentir horrivelmente inferior e deprimida. No entanto, não me sinto assim, graças ao moksha e à meditação. Não possuo talentos ou habilidades, porém no que se refere a viver, a compreender as pessoas e a ajudá-las, sinto-me cada vez mais hábil e sensível. Quando se chega àquilo que Vijaya chama de «graças imerecidas»… Você pode ser o maior gênio do mundo, porém não pode ter nada além daquilo que me foi dado! Não é verdade, Vijaya?
— Sim. É perfeitamente verdadeiro.
Ela voltou-se novamente para Will, dizendo:
— Como vê, Mr. Farnaby, Pala é o lugar ideal para as pessoas estúpidas. A maior felicidade para a maioria. E nós, os estúpidos, somos a maioria. Reconhecemos a superioridade e sabemos muito bem que a espécie de inteligência de pessoas como o dr. Robert, Vijaya e o meu querido Ranga é tremendamente importante. Sabemos também que nossa espécie de inteligência é importante e não os invejamos porque recebemos tanto quanto eles. Algumas vezes recebemos mais.
— Sim — concordou Vijaya. — Algumas vezes recebem até mais, pela simples razão de que um talento na manipulação de símbolos tenta seus possuidores a continuar manipulando-os, o que constitui um obstáculo à experiência concreta e à recepção de graças imerecidas.
— Desse modo — disse Mrs. Rao —, não precisamos que tenham tanta pena de nós. — Olhou para o relógio. — Meu Deus! Se não me apressar chegarei tarde para o almoço dos Dillip.
Dizendo isso, encaminhou-se rapidamente para a porta.
— Tempo, tempo, tempo — brincou Will. — Horário, mesmo neste lugar de infinita meditação. A hora do almoço interrompendo incorrigivelmente a eternidade. — Deu uma gargalhada e continuou: — Nunca aceite um «sim» como resposta. A natureza das coisas é sempre negativa.
Mrs. Rao parou por um momento e, olhando-o, disse com um sorriso:
— Algumas vezes é a eternidade que milagrosamente interrompe o tempo e mesmo a hora do almoço. Até logo.
Agitando a mão num movimento de despedida, ela se foi.
— O que é melhor, nascer-se estúpido numa sociedade inteligente ou nascer-se inteligente numa sociedade de mentecaptos? — Will pensou alto, enquanto acompanhava Vijaya através da penumbra do templo para o descampado iluminado pelo sol do meio-dia.