— Por aí você vê que nós podemos vir a ter um clarividente centenário na família — disse Shanta.
O bebê arrotou outra vez e, rindo, ela tornou a comentar:
— O oráculo falou e, como de costume, de maneira muito enigmática. — Dirigindo-se a Vijaya, disse: — Se você quiser que o almoço esteja pronto na hora é bom que comece a fazer alguma coisa. Ficarei ocupada com Rama pelo menos durante mais dez minutos.
Vijaya levantou-se, colocou uma das mãos sobre o ombro da esposa e com a outra acariciou delicadamente o bebê.
Curvando-se, Shanta esfregou o rosto na penugem da cabeça da criança.
— É o papai — murmurou. — É um bom pai, bom, muito bom.
Depois de um último tapinha no rosto do bebê, Vijaya disse a Wilclass="underline"
— Você tem mostrado curiosidade em saber como é que mantemos boas relações com a nossa fauna. Eu lhe mostrarei. — Vijaya levantou a mão e disse: — Polly, Polly.
Cautelosamente, o grande pássaro começou a andar de seu ombro em direção ao indicador estendido.
— Polly é um bom pássaro — entoou. — Polly é um pássaro muito bom.
Abaixou a mão com o intuito de possibilitar uma aproximação entre o corpo do pássaro e o da criança. Começou então a fazer movimentos lentos de modo a pôr em contato as suas penas com a pele morena, e enquanto fazia esses movimentos repetia continuamente: «Polly é um bom pássaro… um bom pássaro».
O papagaio emitia uma série de sons de baixa tonalidade, semelhantes a uma risada, e, curvando-se para diante, sobre o dedo onde estava empoleirado, bicou com cuidado a delicada orelha da criança.
— Que bom pássaro — murmurou Shanta, continuando a repetir o refrão. — Que bom pássaro…
— O dr. Andrew aprendeu isso — disse Vijaya — quando, trabalhando como naturalista no Melampus, entrou em contato com uma tribo do norte da Nova Guiné. Povo neolítico; porém, do mesmo modo que os cristãos e os budistas, acreditava no amor. Eram diferentes de nós e de vocês porque inventaram métodos práticos de tornarem reais as coisas em que acreditavam. Essa teoria foi uma das suas descobertas mais felizes. Acaricie uma criança enquanto ela está sendo alimentada. Isso duplica o seu prazer. Enquanto ela está mamando e sendo acariciada, apresente o animal ou a pessoa de quem você quer que ela goste. Esfregue o seu corpo contra o dela. Permita que haja um contato físico caloroso entre a criança e o objeto a ser amado. Simultaneamente repita uma palavra, como, por exemplo, «bom». A princípio, ela perceberá somente o som de sua voz. Com o passar do tempo, quando aprender a falar, compreenderá a significação do que ouvia. Alimento, mais carícia, mais contato, mais «bom» é igual a amor. E amor é igual a prazer. Amor é igual a satisfação.
— Isto é puro Pavlov!
— Pavlov usado exclusivamente com um bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão. Enquanto isso vocês preferem usá-lo para lavagens mentais, para vender cigarros, vodca e patriotismo. Pavlov para beneficiar os ditadores, os generais e os magnatas.
Recusando-se a continuar isolado, o vira-lata amarelo veio juntar-se ao grupo e lambia imparcialmente tudo que fosse dotado de vida e que estivesse à seu alcance — o braço de Shanta, a mão de Vijaya, os pés do papagaio, as nádegas do bebê. Puxando-o para perto de si, Shanta esfregou a criança contra o seu flanco peludo.
— Este é um cachorro muito, muito bom — disse. — Toby é um cachorro muito, muito bom. É um cachorro muito bom.
Will deu uma risada.
— Será que eu não deveria entrar na função? — perguntou.
— Estava querendo lhe sugerir isso, mas estava receosa de que você considerasse tudo isso como coisa aquém da sua dignidade — respondeu Shanta.
— Tome meu lugar — disse Vijaya. — Devo ir providenciar nosso almoço.
Ainda carregando o papagaio, dirigiu-se para a porta que levava à cozinha.
Levantando a cadeira, Will se aproximou da criança e começou a acariciar seu frágil corpo.
— É outro homem — murmurou Shanta. — É um homem bom, meu bebê. Um homem bom.
— Como gostaria que tudo isso fosse verdade — disse Will com um curto e triste sorriso.
— Aqui e agora é a verdade. — Inclinando-se novamente sobre a criança, continuou a repetir: — Ele é um bom homem. Um homem muito bom.
Will olhou para aquela fisionomia feliz, na qual havia um sorriso apenas esboçado, e sentiu na ponta dos dedos o corpo quente e macio da criança. Bom, bom, bom…
Se sua vida tivesse sido completamente diferente, na sua absurda e odiosa realidade, ele também poderia ter conhecido essa bondade. Por isso nunca aceita o «sim» como resposta, mesmo quando, num momento como este, parece conter toda a evidência. Olhando novamente com os olhos propositadamente voltados para uma outra onda de avaliação, pôde ver a caricatura de um altar de Memling. Viu a Madona com a Criança, o cão, Pavlov e o conhecimento casual. Subitamente compreendeu, do fundo do seu ser, por que Mr. Bahu odiava aquele povo. A razão pela qual estava tão empenhado em destruí-los. É desnecessário dizer que, como sempre, tudo era feito em nome de Deus.
— Bom — murmurava ainda Shanta para o bebê. — Bom, bom, bom.
Bons demais, eis o crime deles. Isso simplesmente não podia ser permitido, e, no entanto, era tão precioso! Quão apaixonadamente desejara tomar parte nisso! «Puro sentimentalismo!» disse a si mesmo, e, depois, em voz alta:
— Bom, bom, bom — repetiu com ironia. — E quando a criança cresce um pouco e descobre que muitas pessoas e coisas são completamente más, más, más?
— O afeto gera o afeto — respondeu ela.
— Somente dos benevolentes!! Mas não dos gananciosos, dos amantes do poder, dos frustrados ou dos amargos. Para estes, a benevolência não passa de fraqueza, de um convite à exploração, à tirania ou à vingança impune.
— É preciso correr esse risco, é preciso começar. Felizmente ninguém é imortal. Os que foram condicionados a enganar, a tiranizar e a amargurar estarão mortos daqui a alguns anos. Mortos e substituídos por homens e mulheres educados de maneira diferente. Isso aconteceu conosco e pode acontecer a vocês.
— Pode acontecer — concordou ele —, porém com a bomba H, o nacionalismo e cinqüenta milhões de pessoas nascendo anualmente não há a menor possibilidade disso.
— Não se pode julgar até que se experimente.
— Não podemos tentá-lo enquanto o mundo estiver como está. E é claro que assim permanecerá, a menos que tentemos mudá-lo. Além dessa tentativa, é necessário que haja pelo menos um sucesso como o seu. Foi isso que me levou à pergunta inicial. Que acontece quando o bom, bom, bom descobre que, mesmo em Pala, existe muita coisa má, má, má? As crianças não se sentem desagradavelmente chocadas?
— Tentamos imunizá-las contra esses choques.
— De que modo? Tornando-lhes as coisas desagradáveis enquanto ainda são jovens?
— Desagradável não é a palavra certa, e sim real. Nós lhes ensinamos a amar e confiar, porém ao mesmo tempo os expomos a todos os aspectos da realidade. Damos-lhes responsabilidades para que saibam que Pala não é um éden ou uma «terra de cocanhos». É um lugar agradável que somente permanecerá assim se todos trabalharem e procederem com decência. Enquanto isso, mesmo aqui, a realidade é a mesma.
— Que dizer de realidades como as horripilantes cobras que encontrei quando escalava o rochedo? Vocês podem continuar dizendo «bom, bom, bom», e mesmo assim as cobras continuarão mordendo.
— Você se refere ao fato de elas ainda poderem morder, mas será que continuarão a fazê-lo?
— Por que não?
— Olhe ali — disse Shanta.
Virando a cabeça, Will observou que ela apontava para um nicho na parede atrás dele. Dentro do nicho, um Buda de pedra estava sentado sobre um pedestal cilíndrico, curiosamente entalhado, encimado por uma espécie de dossel em forma de folha que, estreitando-se para baixo, formava um largo pilar atrás dele. A escultura tinha a metade das dimensões de um homem.