— É uma pequena réplica do Buda que se encontra no acampamento. Aquela figura enorme que está à beira do lago de lótus — continuou ela.
— Acho que é um excelente exemplar de escultura — disse Will. — Aquele sorriso realmente dá às pessoas uma idéia de como deve ser a visão beatífica. Porém, qual a sua relação com as cobras?
— Olhe novamente.
Ele obedeceu, dizendo em seguida:
— Não vejo nada de especial.
— Olhe com mais atenção.
Passaram-se os segundos e, de repente, com grande surpresa, notou algo estranho e perturbador. Aquilo que imaginara ser um pedestal cilíndrico, estranhamente enfeitado, revelara-se subitamente como sendo uma enorme cobra enrolada. Aquela abóbada inclinada e que ia se estreitando, sob a qual sentava-se o Buda, não passava de um capuz formado pelo achatamento da cabeça de uma cobra gigantesca.
— Meu Deus! Não havia percebido! Como se pode ser tão desatento?
— É esta a primeira vez que vê o Buda representado desta maneira?
— Sim, é a primeira vez. Existe alguma lenda a respeito?
Ela balançou a cabeça afirmativamente, dizendo:
— É uma das minhas preferidas. Com certeza você já ouviu falar a respeito da árvore Bodhi, não é verdade?
— Sim. Sei alguma coisa a respeito.
— Mas essa não foi a única árvore sob a qual Gautama sentou-se por ocasião da sua Iluminação. Depois da árvore Bodhi ele sentou-se durante sete dias sob uma figueira, a árvore do Goatherd. Após isso, mudou-se para a árvore do Muchalinda.
— Quem era Muchalinda?
— Muchalinda era o rei das cobras, que por ser um Deus sabia tudo o que acontecia. Quando Buda se sentou debaixo da sua árvore, o rei Cobra, saindo da sua toca a vários metros de distância, veio se arrastando, a fim de prestar à Sabedoria as homenagens da Natureza. Quando esse fato se deu, desencadeou— se uma grande tempestade vinda do oeste. A divina cobra enrolou— se naquele corpo mais do que divino, abriu o capuz sobre sua cabeça e abrigou o Tathagata da chuva e do vento, durante os sete dias em que esteve em contemplação. Desse modo continua até hoje. Sentado sobre a cobra, coberto pela cobra, estando cônscio simultaneamente da cobra, da Grande Luz e da sua suprema identidade.
— Como divergem os nossos pontos de vista a respeito das cobras! — disse Will.
— Presume-se que esse seu ponto de vista seja o mesmo de Deus. Lembra-se do Gênesis?
— Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a descendência dela e a tua — citou ele.
— Porém a Sabedoria nunca distribui inimizades. Todas essas verdadeiras «brigas de galo» entre o homem e a natureza, entre a natureza e Deus e entre a carne e o espírito são destituídas de sentido! A Sabedoria não faz essas separações insanas!
— Nem tampouco a ciência…
— Com passadas largas, a Sabedoria conduz a ciência a pontos distantes.
— E o totemismo? — perguntou Will. — E os cultos de fertilidade? Eles não faziam quaisquer separações. Representam sabedoria?
— Claro que sim. A sabedoria primitiva. A sabedoria do nível neolítico. Passado algum tempo as pessoas começaram a se sentir constrangidas e os velhos «deuses negros» começaram a não lhes merecer respeito. O cenário mudou. Surgiram os «deuses da luz», os profetas, Pitágoras e Zoroastro, os jainistas e os primitivos budistas. Mais tarde surgiu a «idade da briga de galos cósmica», Ormuz versus Arimã, Jeová versus Satã e Baal. Nirvana se opôs a samsara e a aparência à «realidade ideal» de Platão. Exceto nos cérebros de alguns tankriksistas, mahaianistas, taoístas e cristãos heréticos, essa «briga de galos» se prolonga por quase dois mil anos.
— Que se seguiu a isso?
— Foi então que a biologia moderna começou a dar os primeiros passos.
— Deus ordenou: «Darwin seja feito». E houve Nietzsche, o imperialismo e Adolf Hitler.
— Houve tudo isso, mas também a possibilidade de uma nova espécie de sabedoria para todos — concordou ela. — Darwin elevou o velho totemismo ao nível da biologia. Os cultos de fertilidade reapareceram sob a forma de genética e de Havelock Ellis. Agora, cabe-nos dar outra meia-volta na espiral. O darwinismo era a velha «sabedoria neolítica» construída sobre bases de conceitos científicos. Esta nova «sabedoria consciente», a espécie de sabedoria que foi profeticamente entrevista no zen, no taoísmo e no tantra, é a teoria biológica vivida na prática. E o darwinismo elevado à categoria de compaixão e compreensão interior. Sendo assim, não existe nenhuma razão terrena muito menos celestial pela qual Buda ou qualquer outro não possa contemplar a Grande Luz que se revelou em uma cobra.
— Mesmo que essa cobra pudesse tê-lo matado?
— Mesmo assim.
— Mesmo sendo o mais antigo e o mais universal dos símbolos fálicos?
Shanta riu-se e respondeu:
— «Medite sob a árvore de Muchalinda», é o conselho que damos a todos os pares de namorados. E, no intervalo dessas meditações amorosas, lembre-se daquilo que lhe foi ensinado quando criança: as cobras são suas irmãs, merecendo por isso sua compaixão e seu respeito. Resumindo em uma só palavra, elas são boas, boas, boas.
— São também venenosas, venenosas, venenosas.
— Porém, se você se lembrar de que sua bondade é proporcional a seu veneno e agir de acordo com isso, elas não o usarão.
— Quem disse isso?
— Isto já é um fato constatado. Aqueles que não se amedrontam com elas e aqueles que não se aproximam delas com a idéia fixa de que a melhor cobra é a que está morta, quase nunca são mordidos. Na próxima semana pedirei emprestado a nosso vizinho seu píton domesticado. Por alguns dias darei as refeições de Rama entre os anéis da «velha serpente».
Do lado de fora da casa vieram os sons de risadas e de uma confusão de vozes de crianças falando inglês e palanês. Após um momento, parecendo alta e maternal em relação aos seus encargos, Mary Sarojini entrou no aposento ladeada por um par de gêmeos idênticos de quatro anos, e seguida pelo robusto querubim que estava com ela quando Will abriu os olhos em Pala, pela primeira vez.
— Trouxemos Tara e Arjuna do jardim da infância — explicou Mary Sarojini, enquanto os gêmeos se atiravam sobre a mãe.
Com o bebê num dos braços e com o outro envolvendo os dois meninos, Shanta agradeceu sorrindo:
— Foi muita bondade sua.
Tom Krishna foi quem respondeu:
— A senhora não tem nada que agradecer. — Dando um passo à frente, após um momento de hesitação, tornou a dizer: — Estava pensando… — começou ele, interrompendo-se e olhando suplicante para a irmã. Mary Sarojini balançou a cabeça.
— Que estava pensando? — perguntou Shanta.
— Bem, na verdade, nós estávamos pensando… Quer dizer, poderíamos jantar com vocês?
Shanta olhou de um para outro e disse:
— E melhor que vá perguntar a Vijaya se há bastante comida, pois é ele quem está cozinhando hoje.
— Está bem — disse Tom Krishna sem entusiasmo.
Com passos vagarosos e relutantes atravessou o aposento, dirigindo-se à cozinha. Shanta voltou-se para Mary Sarojini, perguntando:
— Que houve?
— Mamãe já lhe disse pelo menos umas cinqüenta vezes que não gosta que ele traga lagartixas para dentro de casa. Hoje pela manhã ele fez isso de novo e ela ficou muito zangada.
Por isso vocês acharam melhor vir jantar aqui não foi?
— Sim, mas se não lhe convier poderemos tentar a casa dos Rao ou dos Rajajinnadasa.