— Estou certa de que não será incômodo — assegurou-lhe Shanta. — Apenas achei que seria bom para Tom Krishna ter uma pequena conversa com Vijaya.
— A senhora está perfeitamente certa — disse Mary Sarojini gravemente.
Após dizer isso, chamou com ar eficiente:
— Tara, Arjuna, venham comigo ao banheiro para que eu os lave. Eles estão bastante sujos — disse, virando-se para Shanta, enquanto se afastava com os gêmeos.
Will esperou que estivessem fora do alcance de sua voz e disse para Shanta:
— Parece que tive a oportunidade de ver o Clube de Adoção Mútua em pleno funcionamento.
— Felizmente em ação muito moderada. Tom Krishna e Mary Sarojini se dão maravilhosamente com a mãe. Não há nenhum problema pessoal por lá. Apenas o problema do destino, o enorme e terrível problema da morte de Dugald.
— Susila se casará novamente? — indagou Will.
— Espero que sim. Para o bem de todos. Enquanto isso, faz bem às crianças passar algum tempo com um e outro dos pais que escolheram. É bom, especialmente para Tom Krishna. Ele está chegando à idade em que os meninos descobrem sua virilidade. Apesar de ainda chorar como um bebê, passados alguns momentos já está se jactando, se exibindo e trazendo lagartixas para dentro de casa, somente para provar que é duzentos por cento homem. Foi por isso que eu o mandei falar com Vijaya, que representa tudo aquilo que Tom Krishna gosta de imaginar que é: dois metros e setenta de altura, um metro e oitenta de largura, terrivelmente forte e imensamente competente. Quando Vijaya lhe diz como proceder, Tom Krishna escuta; escuta como nunca o faria comigo ou com sua mãe, se disséssemos as mesmas coisas. A vantagem é que Vijaya pode dizer as mesmas coisas que diríamos, pois, além de ser duzentos por cento másculo, sua sensibilidade é quase cinqüenta por cento feminina. Desse modo, o menino está realmente lucrando. Agora, preciso pôr esse homenzinho na cama e aprontar-me para o almoço — concluiu ela, olhando para a criança adormecida em seus braços.
CAPÍTULO XIII
De banho tomado e cabelos penteados, os gêmeos já estavam em suas cadeiras altas. Mary Sarojini se debruçara sobre eles com se fosse uma pequena mãe ao mesmo tempo ansiosa e orgulhosa. No fogão, Vijaya, munido de uma concha, retirava arroz e verduras de uma panela de barro. Cuidadosamente e com a fisionomia denotando uma atenção concentrada, Tom Krishna levava para a mesa as tigelas cheias.
— Até que enfim! — disse Vijaya quando acabou de despachar a última tigela. Limpou as mãos e se dirigiu à mesa onde ocupou seu lugar.
— É melhor que explique ao nosso hóspede sobre a oração — falou, dirigindo-se a Shanta.
Ela virou-se para Will e explicou:
— Em Pala não damos graças antes das refeições e sim durante. Ou melhor, nós não dizemos orações, nós as mastigamos.
— Mastigam?
— Damos graças ao mastigarmos o primeiro bocado de cada prato. Mastigamos cuidadosamente, até que nada reste. Durante toda a mastigação prestamos atenção ao sabor do alimento, à sua consistência e temperatura, à pressão que exerce sobre os dentes e à tensão dos músculos maxilares.
— Enquanto isso, agradecem ao Iluminado, a Xiva ou a quem quer que seja, não é verdade?
Shanta balançou a cabeça vigorosamente.
— Isso distrairá a atenção, que é a alma de tudo. Atenção à experiência de alguma coisa que está sendo dada. Atenção para alguma coisa que você não inventou. Não se trata de repetir uma série de palavras decoradas, dirigidas a alguém que existe em sua própria imaginação. — Ela circunvagou o olhar pela mesa. — Vamos começar?
— Viva! — gritaram os gêmeos em uníssono, pegando imediatamente as colheres.
Durante um longo minuto reinou o silêncio, quebrado apenas pelos gêmeos que ainda não tinham aprendido a comer sem estalar os lábios.
— Podemos engolir? — perguntou um deles passado certo tempo.
Shanta acenou afirmativamente com a cabeça. Todos deglutiram. Houve um tinir de colheres e uma verdadeira explosão de conversas de boca cheia.
— Que gosto tinha a sua «graça»? — perguntou Shanta.
— Eu a senti como uma sucessão de várias coisas diferentes — disse Will. — Ou melhor, ela se assemelhou a uma sucessão de variações sobre o tema fundamentaclass="underline" arroz e açafrão. Havia também pimentão, zucchini e algo folhoso que não consegui identificar. É interessante como o sabor muda continuamente, coisa que nunca observara.
— Enquanto estava prestando atenção a essas coisas, se libertou momentaneamente das divagações, das lembranças, das antecipações, das idéias tolas, de todos os sintomas do seu próprio eu.
— Será que não estava me saboreando?
Shanta olhou para o outro lado da mesa e perguntou ao marido:
— Que é que diz a isso, Vijaya?
— Acho que é um meio-termo entre o eu e o não eu. Saborear é o meu não eu fazendo alguma coisa para a totalidade do organismo. Ao mesmo tempo, o ato de saborear representa o meu eu tomando conhecimento do que está acontecendo. É aí que reside a essência da nossa «ação de graças mastigada». Através dela, o eu adquire maior consciência do que o não eu está apto a realizar.
— Tudo isso é muito bonito — comentou Will. — Mas onde está a essência da «essência»?
Foi Shanta quem respondeu:
— A essência da «essência» é atingida quando tiver aprendido a prestar cada vez maior atenção ao não eu que existe no seu próprio organismo (suas sensações gástricas). Subitamente percebe que está prestando atenção ao não eu que existe nos recantos da sua consciência. Talvez seja melhor que inverta inteiramente a ordem do meu raciocínio. O não eu que existe nos recônditos da consciência de cada um achará mais fácil se fazer conhecido por um eu que tenha aprendido a ter maior consciência do seu não eu fisiológico.
Ela foi interrompida por uma queda seguida de um grito de um dos gêmeos.
— Além disso — continuou enquanto limpava o assoalho —, temos de considerar o problema do eu e do não eu em relação às pessoas que medem menos de um metro. Um prêmio de sessenta e quatro mil rupias será concedido a quem apresente uma solução que resista aos descuidos.
Após limpar os olhos da criança e fazê-la assoar o nariz, deu— lhe um beijo e dirigiu-se ao fogão para apanhar outra tigela de arroz.
— Que é que têm de fazer esta tarde? — perguntou Vijaya quando o almoço chegou ao fim.
— Estamos encarregados dos espantalhos — respondeu Tom Krishna com ares importantes.
— No campo, pouco abaixo da escola — acrescentou Mary Sarojini.
— Eu os levarei de jipe até lá — disse Vijaya. — Quer nos acompanhar? — perguntou, dirigindo-se a Will Farnaby.
Will concordou com um gesto de cabeça.
— Se me fosse permitido, gostaria de ver a escola. É possível que venha mesmo a sentir vontade de me sentar numa das salas de aula.
Da varanda, Shanta acenou-lhes um adeus, e em poucos minutos viram o local onde o jipe estava estacionado.
— A escola fica do outro lado da vila — explicou Vijaya enquanto punha o motor em movimento. — Temos de dirigir com cuidado. Após uma descida, teremos que subir novamente.
Desceram através das plantações de arroz, de milho e de batata-doce, dispostas em plataformas, e ao atingirem a planície entraram por um atalho limitado à esquerda por um pequeno viveiro lamacento e à direita por um pomar de fruta-pão. Começaram então a subida, atravessando campos ora verdes ora dourados, e finalmente divisaram o prédio branco e espaçoso da escola, imerso nas sombras de árvores majestosas.
— Os nossos espantalhos estão lá embaixo — disse Mary Sarojini.