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— Foi o que estava sugerindo quando me referi ao feio, ao mau e àquilo que é mais verídico do que a verdade oficial.

— Quer exibir seu estilo de prosa ou quer realmente falar a seu respeito?

— Estou verdadeiramente ansioso, mas minha vontade de não falar a meu respeito é tão grande quanto meu desejo de extroversão. Disso nasceu, como já deve ter observado, todo o meu inesgotável interesse pelas artes, ciência, filosofia, política, literatura e por tudo, enfim, que não seja aquilo que tem realmente alguma importância.

Depois de um longo silêncio, Susila começou a falar sobre a Catedral de Wells, num tom de quem recorda coisas sem importância. Relembrou o pio das gralhas e os cisnes brancos deslizando entre os reflexos de nuvens que flutuavam na superfície das águas. Em poucos minutos, Will também estava flutuando.

— Fui muito feliz durante toda a minha estada em Wells — disse ela. — Maravilhosamente feliz! Você também foi, não é verdade?

Will não respondeu. Estava se lembrando dos dias passados, havia vários anos, nas pradarias verdes, antes de seu casamento com Molly, antes mesmo de terem sido amantes. Quanta paz! Que mundo compacto, sem vermes, todo feito de grama e de flores! E entre eles fluíra aquela espécie de sentimento natural e sem distorções, que não experimentava desde os dias distantes em que a tia Mary ainda vivia. A tia Mary fora a única pessoa a quem realmente amara. Agora ali estava Molly, que era sua sucessora. Que dádiva! Era o amor soando em outro tom, no entanto a melodia e as sutis harmonias eram as mesmas. Recordou, então, a quarta noite da estada deles. Molly batera na parede que separava seus quartos e ele, encontrando a porta escancarada, no escuro e às apalpadelas procurara a cama. Lá, inteiramente despida, a «irmã de caridade» se esforçara ao máximo (e falhara lamentavelmente) a desempenhar o papel de «esposa do amor».

De repente, como acontecia quase todas as tardes, ouviu o barulho da ventania e, atenuado pela distância, percebeu o rugido surdo da chuva caindo na folhagem espessa. Esse rugido aumentava à medida que a chuva se aproximava, e em poucos segundos as gotas estavam batendo nas vidraças, com a mesma insistência com que martelaram as janelas do seu estúdio no dia daquela última conversa: «Você está falando sério, Will?»

A dor e a vergonha do seu ato fizeram-no sentir vontade de chorar alto. Mordeu os lábios.

— Em que está pensando? — perguntou Susila.

Não era só uma questão de pensar. Ele a via e, nesse momento, ouvia sua voz: «Você está falando sério, Will?» E, através do barulho da chuva, ele ouviu sua própria resposta: «Estou».

O rugido tinha diminuído, o temporal amainara. Na vidraça, a chuva tamborilava timidamente. Em qual das vidraças? Quando e onde? Na vidraça daquela sala? Na outra?

— Em que está pensando? — repetiu Susila.

— Estou pensando no que fiz a Molly.

— O que foi que fez a ela? — perguntou.

Ele não queria responder, mas Susila estava inexorável.

— Diga o que fez.

Uma rajada violenta fez as janelas vibrarem. Estava chovendo forte e para Will Farnaby aquela chuva parecia ter por objetivo obrigá-lo a recordar coisas que não queria; parecia compeli-lo a dizer em voz alta as coisas vergonhosas que devia guardar consigo.

— Diga-me.

Relutantemente e contra a própria vontade, começou a falar:

— «Você está falando sério, Will? Por causa de Babs? Babs? Deus o ajude!» Sim, por causa dela. Acreditasse ou não, estava falando sério. E ela saiu andando debaixo da chuva… Quando voltei a vê-la, estava no hospital.

— Ainda estava chovendo? — perguntou Susila.

— Ainda.

— Tão forte como agora?

— Quase. — Will não estava mais ouvindo um aguaceiro numa tarde tropical, mas o tamborilar contínuo na janela do quartinho onde Molly estava morrendo.

«Sou eu», dissera, querendo abafar o ruído da chuva. «É Will.» Nada aconteceu. De repente, sentiu a mão de Molly mover— se quase imperceptivelmente dentro da sua. Sentiu a pressão voluntária de seus dedos e, depois de alguns segundos, a descontração involuntária, a flacidez completa.

— Repita tudo, Will.

Ele sacudiu a cabeça. Era muito penoso, muito humilhante.

— Repita — insistiu Susila. — É o único modo.

Fazendo um esforço enorme, repetiu a odiosa história. Estava mesmo falando sério? Sim, estava. Quisera feri-la. Talvez quisesse (alguém sabe com certeza o que realmente quer?) matá-la. Tudo por Babs! Ou pelo Mundo Bem Perdido! Não o seu mundo. O mundo de Molly e, no centro dele, a vida que o havia criado. Extinto, para que no escuro pudesse sentir aquele perfume delicioso. Por causa daqueles reflexos musculares, daquela enormidade de prazer. Por causa daquelas habilidades despudoradas, devastadoras e intoxicantes. «Adeus, Will.» E a porta se fechou atrás dela com um ruído fraco e seco. Ele quis chamá-la. Mas o amante de Babs recordava suas habilidades, seus reflexos e o cheiro de almíscar que se emanava de um corpo transfigurado no auge do prazer. Lembrando-se dessas coisas, permaneceu parado à janela. Observou o carro se afastar na chuva e, quando o viu dobrar a esquina, sentiu-se invadido por uma vergonhosa alegria. Finalmente estava livre! Três horas mais tarde, no hospital, sentiu que estava ainda mais livre do que esperava. Naquele momento, sentiu pela última vez a fraca pressão de seus dedos. Sua última mensagem de amor. A mão se tornou flácida e, de repente, a mensagem foi interrompida. Percebeu apavorado que não estava mais respirando.

— Morta! — murmurou, e se sentiu sufocado. — Morta!

— Suponha que não tenha sido por sua culpa. Pense que ela morreu subitamente sem que você tivesse tido qualquer interferência. Não teria dado quase no mesmo? — perguntou Susila.

— O que é que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que há mais do que complexo de culpa em seus sentimentos a respeito da morte de Molly. É a própria morte como ela é que você acha tão terrível, insensata e má.

Ela agora estava pensando em Dugald.

— Insensata e má — repetiu ele. — E justamente pelo fato de tudo ser tão bestial e sem sentido foi que me transformei num observador profissional de execuções e, como um abutre, vagueio de um a outro extremo da terra acompanhando o cheiro da morte. As pessoas boas e cordatas não têm a menor idéia do que seja o mundo. Não me refiro às épocas excepcionais, como a guerra, mas à vida em tempos normais. Durante todo o tempo!

À medida que falava, estava vendo (com a mesma velocidade e nitidez das visões dos que se afogam) todas as cenas odiosas que presenciara no curso de suas bem-remuneradas peregrinações a qualquer antro ou matadouro que, sendo bastante repulsivo, pudesse ser classificado como “notícia’’. Os negros da África do Sul, o homem na câmara de gás em San Quentin, os corpos mutilados numa fazenda da Argélia. Multidões, policiais e pára-quedistas em todos os lugares. A visão daquelas crianças de pele escura, barrigudas, de pernas finas e em cujas pálpebras irritadas as moscas enxameavam. Por toda a parte os cheiros nauseantes da fome e da doença. Pior do que tudo, o terrível cheiro da morte. De repente sentiu que estava respirando a essência de almíscar que se exalava do corpo de Babs. Sentiu seu perfume como se estivesse misturado e impregnado com o odor da morte Ao respirar o perfume de Babs, lembrou-se de uma de suas brincadeiras sobre a composição química do Purgatório e do Para so. O Purgatório é um misto de tetraetilenodiamina com hidrogênio sulfurado. O Paraíso, não há dúvida, é feito de sintrini-tropsibutil tolueno e de um coquetel de impurezas orgânicas. Ah, ah, ah! (As delícias da vida social!) Os odores do amor e da morte foram substituídos, numa fração de segundos, pelo cheiro de um animal — cheiro de um cão.