O vento tornou-se novamente violento e fortes pingos de chuva batiam de encontro à vidraça.
— Ainda está pensando em Molly? — indagou Susila.
— Não. Pensava em algo que estava completamente esquecido — respondeu. — Não tinha mais do que uns quatro anos de idade quando se deu o fato que agora me veio à mente. Coitado do Tigre!
— Quem é esse Tigre?
Tigre fora o seu belo cão perdigueiro. A única fonte de luz naquela casa sombria onde passara a infância. Tigre. Querido Tigre! Em meio a todo aquele medo e aquela infelicidade, entre o ódio zombeteiro que seu pai nutria por tudo e por todos e o auto— sacrifício consciente de sua mãe, Tigre irradiava compreensão e amizade. Que latido vigoroso e cheio de uma alegria que não conseguia conter!
Sua mãe costumava pô-lo no colo e falar-lhe a respeito de Deus e de Jesus. Porém havia mais Deus em Tigre do que em todas aquelas histórias bíblicas. Para Will, Tigre era a própria Encarnação. Mas, um dia, a Encarnação apareceu com melancolia.
— Que houve então?
— Sua cama fica na cozinha e eu estou ajoelhado perto dele. Ao acariciá-lo, noto que seu pêlo está diferente do que era antes da doença. Parece pegajoso. Sinto o mau cheiro que emana. Se não gostasse tanto dele, sairia correndo, pois me custa ficar a seu lado. Porém gosto mais dele do que de qualquer pessoa ou coisa. Enquanto o acaricio, digo-lhe que em breve estará bom. Muito em breve, amanhã de manhã. De repente, ele começa a tremer. Segurando sua cabeça entre as mãos, tento fazer parar esse tremor. Tudo em vão. O tremor se transforma numa terrível crise convulsiva. Estou amedrontado e nauseado. Estou terrivelmente amedrontado! Após algum tempo, cessam os tremores e as convulsões e ele fica inteiramente imóvel. Levanto sua cabeça e, ao soltá-la, ela cai para trás, fazendo um ruído semelhante a um pedaço de osso recoberto de carne.
Will parou de falar. Lágrimas lhe rolavam pelas faces e ele estremecia com os soluços de uma criança de quatro anos que chora a perda do seu cão e se defronta com a terrível e inexplicável realidade da morte. Como se uma chave tivesse sido acionada em seu cérebro, foi sacudido por um ligeiro tremor e voltou a seu estado normal. Era novamente um adulto. Cessara de divagar.
— Desculpe-me. — Enxugou as lágrimas, assoou o nariz e continuou falando: — Essa foi a minha primeira apresentação ao Horror Fundamental. Tigre foi meu único amigo e consolo. E, naturalmente, isso era algo que o Horror Fundamental não podia tolerar. O mesmo aconteceu com a tia Mary. Ela foi a única pessoa que realmente amei, admirei, e em quem confiei inteiramente. Meu Deus! Como foi horrível o que o Horror Fundamental fez a ela!
— Conte-me — pediu Susila.
Will hesitou e, depois, com um encolher de ombros, disse:
— Por que não? Mary Frances Farnaby era a irmã mais nova de meu pai. Casou-se aos dezoito anos (poucos antes da Primeira Guerra Mundial) com um soldado profissional. Frank e Mary. Mary e Frank. Que harmonia! Que felicidade! — Sorriu. — Mesmo fora de Pala ocasionalmente encontramos algumas ilhas de decência. Pequenos recifes. De vez em quando deparamos com uma Taiti exuberante, mas que infelizmente está rodeada pelo Horror Fundamental. Duas pessoas jovens na sua Pala particular. Numa bela manhã, no dia 4 de agosto de 1914, Frank embarcou com a Força Expedicionária. Na véspera de Natal, Mary deu à luz uma criança disforme, que sobreviveu o tempo necessário para que visse tudo o que o Horror Fundamental pode fazer. Somente Deus pode conceber um idiota microcéfalo. Três meses depois, Frank foi atingido por um estilhaço e morreu em conseqüência de uma gangrena. Tudo isso aconteceu antes de mim — continuou Will após uma pequena pausa. — Quando conheci tia Mary, ela estava na casa dos vinte e se dispusera a dedicar a vida às pessoas idosas. Ajudava-as nos asilos para a velhice e nas casas onde viviam engaioladas. Ajudava àqueles que representavam um peso para seus próprios filhos e netos. Amparava os mendigos. E quanto mais decrépitos, extravagantes e rabugentos, maior sua dedicação. Como eu odiava, na minha infância, os velhos de tia Mary! Cheiravam mal, eram horrivelmente feios e maçantes. Alem disso, estavam geralmente zangados. Mas tia Mary os estimava muito. Gostava indiferentemente dos ricos e dos miseráveis; estimava-os apesar de todos os defeitos. Minha mãe costumava falar muito sobre a caridade cristã, mas de algum modo não se podia acreditar no que dizia. Em seus contínuos auto-sacrifícios, só conseguia sentir o dever, jamais o amor. Quanto à tia Mary, ninguém tinha a menor dúvida. Seu amor era como que uma espécie de irradiação física, alguma coisa que se podia sentir e que era quase tão evidente como o calor e a luz. Nas temporadas que passei com ela nos campos e em minhas visitas quase diárias, depois que se mudou para a cidade, eu tinha a sensação de ter saído de uma geladeira para a luz e o calor do sol. Sentia a vida me invadir sob a influência da sua luz e do seu calor. Foi então que o Horror Fundamental voltou a trabalhar. «Agora sou uma amazona», disse em tom de brincadeira, após a primeira operação.
— Por que uma amazona? — perguntou Susila.
— Às amazonas tinham o seio direito amputado. Eram guerreiras e o seio as atrapalhava quando atiravam com os longos arcos. «Agora sou uma amazona», disse. — E Will Farnaby reviu com os olhos do espírito um sorriso naquela fisionomia de traços marcados, e pôde ouvir (com os ouvidos da imaginação) o tom divertido daquela voz clara e forte. — Decorridos alguns meses, o outro seio teve que ser amputado. Depois vieram os raios X, a doença da irradiação e a degradação lenta. — O rosto de Will adquiriu uma expressão de ferocidade. — Se não fosse tão indescritivelmente hediondo, seria até divertido. Que obra-prima de ironia! Ali estava uma alma que irradiava bondade, amor e obstinada caridade. Foi então que, sem nenhuma causa aparente, alguma coisa começou a funcionar mal. Em vez de ignorar o fato, uma pequenina peça de seu corpo começou a obedecer à segunda lei da termodinâmica. E, à medida que o corpo se desintegrava, a alma começou a perder sua virtude e sua verdadeira identidade. O heroísmo a abandonou. O amor e a bondade se evaporaram. Nos últimos meses de vida ela não era mais a tia Mary a quem eu tanto amara e admirara. Era alguém que dificilmente se distinguia (e isso foi o toque final e mais requintado do Humorista) dos piores e dos mais fracos daqueles velhos aos quais amava e protegia. Tinha que ser humilhada e degradada. E quando a degradação atingiu o máximo, foi sendo conduzida, lentamente e entre dores, até a morte solitária. Solitária — insistiu Will —, porque ninguém pode ajudar, ninguém pode estar sempre em torno. As pessoas têm que sobreviver enquanto você está sofrendo, enquanto você está morrendo. No entanto, todos estão presentes em outro mundo. No seu mundo você não é nada, absolutamente nada. Está só no sofrimento, na morte e mesmo no amor. Continua só, mesmo quando participa integralmente do prazer.
Os odores de Babs e de Tigre. O odor que se desprendia do corpo devastado da tia Mary quando o câncer corroeu seu fígado. Aquele cheiro de sangue contaminado! No meio de todos esses odores nauseantes ou intoxicantes, atento a tudo, permanecia uma consciência solitária. Ali estava uma criança, um rapaz e um homem condenado a permanecer só. Irremediavelmente só.
— Para culminar tudo isso, ela era uma mulher ainda jovem. Tinha quarenta e dois anos e não queria morrer. Não podia compreender o que estavam fazendo com ela. O Horror Fundamental teve que levá-la à força. Eu estava lá e presenciei tudo.
— Será por isso que você se recusa a aceitar o «sim» como resposta?
— Alguém pode admitir que o «sim» respondia a alguma coisa? «Sim» é faz-de-conta. Não é mais que pensamento positivo. As coisas básicas e finais são sempre respondidas com a palavra «não». Espírito? Não! Amor? Não! Sabedoria, significação, heroísmo? Não!