— A exuberante vitalidade e alegria de Tigre. Tigre tão cheio de Deus! Depois, o mesmo Tigre transformado pelo Horror Fundamental num pacote de lixo. Lixo que para ser removido exigiu a vinda de um veterinário remunerado. Depois de Tigre foi a vez da tia Mary. Mutilada, torturada, arrastada na lama, degradada e finalmente transformada (do mesmo modo que Tigre) num pacote de lixo. A única diferença foi que sua remoção foi feita por agente funerário. Um pastor foi contratado para nos fazer crer que tudo aquilo (num sentido de algum modo sublime e pickwickiano) era perfeitamente natural. Vinte anos depois, um outro pastor foi contratado para repetir o mesmo palavrório sobre o caixão de Molly. «Se, depois de observar a conduta dos homens, tivesse lutado com as bestas em Éfeso, que lucro obteria se os mortos não se levantassem? Vamos comer e beber porque amanhã morreremos.» — Will deu uma das suas gargalhadas de hiena. — Que lógica impecável, que sensibilidade, que refinamento moral!
— Contudo, se você é um homem que não aceita o «sim» como resposta, por que cria objeções?
— Para ser coerente não deveria objetar — concordou ele. — Mas as pessoas continuam sendo estetas e gostam de que o «não» seja dito com elegância. «Vamos comer e beber porque amanhã morreremos.» — E Will torceu o rosto numa expressão de nojo.
— Apesar disso, sob um certo aspecto, este conselho é excelente. Comer, beber, morrer: três manifestações da vida impessoal e universal. Os animais vivem inconscientemente essa vida impessoal e universal. O homem comum sabe do fato mas não o vive e, se algum dia se dispusesse a pensar seriamente a respeito dele, se recusaria a aceitá-lo. Uma pessoa esclarecida sabe, vive e o aceita na íntegra. Essa pessoa come, bebe e no devido tempo vem a morrer, porém de modo diferente.
— Será que ressuscita? — perguntou Will, ironicamente.
— Esta é uma das perguntas que Buda sempre se recusou a discutir. O fato de acreditar na vida eterna nunca ajudou ninguém a viver na eternidade nem tampouco o fato de não admiti-la. Assim é melhor que você pare com os prós e os contras (esse é o conselho de Buda) e prossiga na sua missão.
— Que missão?
— A missão de se esclarecer, que é a missão de todos nós. O objetivo preliminar de todas as práticas iogas consiste em nos fazer cada vez mais cônscios.
— Mas eu não quero me tornar mais cônscio. Quero ficar menos cônscio! Quero ter cada vez menos consciência dos horrores semelhantes à morte de tia Mary e os pardieiros de Rendang-Lobo. Menos consciência das visões hediondas e dos cheiros repugnantes. Quero ter menos noção, mesmo de alguns odores deliciosos — acrescentou quando percebeu que, misturado ao cheiro do cão e do câncer, sentira uma brisa perfumada vinda da alcova cor-de-rosa. — Menos cônscio do meu aumento de peso e da anemia subumana de outros indivíduos. Menos cônscio do meu excelente estado de saúde no meio de um oceano de malária e de ancilostomíase. De minha esterilidade que me permite gozar em segurança os prazeres do sexo num mar de bebês famintos. «Perdoemo-los, porque não sabem o que fazem.» Que estado de coisas verdadeiramente abençoado! Infelizmente, sei o que estou fazendo. Sei até demais! E, agora, você me pede que procure me tornar ainda mais cônscio!
— Não estou lhe pedindo nada. Estou simplesmente lhe transmitindo os conselhos de uma sucessão de «pássaros» velhos e astutos, de Gautama ao velho rajá. Comece por se tornar plenamente consciente do que pensa ser; isso o auxiliará a descobrir quem realmente é.
Will levantou os ombros.
— Sempre pensamos ser uma coisa única e maravilhosa, em torno da qual gravita o universo. Na realidade, não representamos mais que uma discreta protelação na marcha contínua da entropia.
— Isso é exatamente a primeira metade da mensagem de Buda. Uma alma transitória e a inevitabilidade do sofrimento. Mas ele não parou aí. Sua mensagem tinha uma segunda parte. Esse retardo temporário da entropia nada mais é do que a simples diluição da Semelhança. Essa ausência de uma alma eterna é também a natureza de Buda.
— Ausência de alma, isso é fácil de admitir. Mas o que me diz a respeito da existência do câncer e da degradação lenta? O que me diz da fome e da superpopulação? O que me diz do coronel Dipa? Será que representam a Semelhança?
— Sem dúvida. Mas descobrir a natureza de Buda é bastante difícil para todos aqueles que estão profundamente envolvidos nesses assuntos. Reforma social e saúde pública são pré-requisitos para que possa haver qualquer espécie de esclarecimento.
— Apesar das reformas sociais e da saúde pública, o povo ainda morre. Mesmo em Pala — acrescentou Will mordazmente.
— Por isso mesmo o corolário do bem-estar tem que ser dhyana: a condensação de todas as iogas da vida e da morte. Assim, a despeito de tudo, mesmo no momento da agonia final você continua a ter consciência do que realmente é.
Ouviu-se o som de passos no assoalho da varanda e uma voz de criança chamou:
— Mãe!
— Estou aqui, meu bem — respondeu Susila.
A porta foi aberta de repente e Mary Sarojini entrou correndo na sala.
— Eles querem que a senhora vá logo, mamãe — disse a menina, ofegante. — É vovó Lakshmi. Ela está… — Só então percebeu que Will Farnaby estava na rede. Interrompeu a frase iniciada e disse: — Oh! Não sabia que você estava aí.
Will acenou com a mão e não falou nada. Ela retribuiu com um ligeiro sorriso e se voltou para a mãe.
— Vovó Lakshmi teve uma piora súbita e vovô Robert ainda está no Posto das Grandes Altitudes; até o momento não conseguiram se comunicar com ele pelo telefone.
— Você correu durante todo o percurso?
— Sim, a não ser nos locais muito íngremes.
Susila passou o braço em torno da menina e beijou-a. De repente levantou-se, plena de eficiência.
— É a mãe de Dugald.
— Ela está…? — Olhou para Mary Sarojini e voltou a olhar para Susila. A morte seria tabu? Podia ser mencionada na presença de crianças?
— Quer saber se ela está morrendo?
Will fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Já estávamos esperando — prosseguiu Susila. — Mas não para hoje. Ela parecia ter melhorado um pouco. — Balançou a cabeça. — Tenho que ir para seu lado, mesmo que esteja num outro mundo. Na verdade — acrescentou —, o outro mundo não é tão completamente diferente como se pensa. Sinto muito que tenhamos de interromper nossa conversa. Continuaremos em outra ocasião. Que pretende fazer agora? Quer ficar aqui ou quer ir à casa do dr. Robert? Talvez prefira vir comigo e com Mary Sarojini…
— Na qualidade de observador profissional de execuções?
— Não — respondeu ela enfaticamente. — Não o quero como um observador profissional de execuções, e sim como um ser humano, como alguém que necessita saber como viver e morrer. Como alguém que necessita disso com tanta urgência como qualquer um de nós.
— Que precisa com muito mais urgência que a maioria das pessoas! No entanto, não irei atrapalhar?
— «Se souber sair do caminho, não atrapalhará a passagem dos outros.»
Segurando sua mão, ela o ajudou a sair da rede. Dois minutos depois, passavam a lagoa de lótus e a grande imagem do Buda meditando sob o capelo da naja. Passaram pela imagem do touro branco e atingiram a entrada principal do acampamento. A chuva tinha passado e num céu verde nuvens enormes tinham um rubor de arcanjos. O sol se punha no Ocidente e sua luminosidade tinha um brilho quase sobrenatural.
Crepúsculos e morte. Morte e beijos. Beijos dos quais resultam nascimentos. Conseqüentemente, morte para outra geração de observadores de crepúsculos.