— Um morto! Outro! Mais outro! — disse Édipo enquanto observava o lúgubre desfile.
— Isso lhes servirá de lição! Isso lhes mostrará o quanto são repulsivos — irrompeu a voz de basso profondo.
Édipo continuou:
Enquanto falava, duas outras marionetes, um menino e uma menina, usando vistosos e alegres trajes palaneses, entraram pela direita e se dirigiram para o lado oposto, tomando posição na parte inferior, um pouco à esquerda do centro do palco, ao lado das carpideiras vestidas de preto.
— Enquanto isso — disse o menino quando Édipo havia terminado:
— E eu? — brandiu o bassoprofondo, de sua abóbada celeste. — Parece que vocês se esquecem de que eu sou o Outro Todo.
A interminável procissão negra ainda se arrastava em direção ao cemitério. Nesse momento, a marcha fúnebre foi interrompida pelo meio. A música foi substituída por uma única nota grave — tuba e contrabaixo —, que se prolongava interminavelmente. O menino, que estava no primeiro plano, levantou a mão.
— Escutem. Prestem atenção a este sussurro, a este estribilho sem fim.
Em uníssono com os instrumentos, invisíveis carpideiras começaram a cantar: «Morte, morte, morte, morte…»
— Mas na vida cabe mais do que uma simples nota — disse o menino.
— A vida pode tocar qualquer música — concordou a menina.
— E seu incessante estribilho de morte serve somente para enriquecer a música.
— Enriquecer a música — repetiu a menina.
Dito isso, o tenor e a soprano começaram a cantar um irrequieto arabesco de intrincados sons que pareciam querer se enrolar na haste do contrabaixo.
O estribilho e o canto foram diminuindo pouco a pouco. Veio o silêncio. A última das carpideiras desapareceu. O menino e a menina deixaram o primeiro plano, retirando-se para um dos cantos onde continuaram a se beijar sem que fossem perturbados.
A um novo toque de trombetas surgiu (vestindo uma túnica púrpura) a figura obesa de Creonte. Acabara de chegar de Delfos, onde consultara o oráculo. Nos minutos que se seguiram, o diálogo foi todo em palanês, e Mary Sarojini teve que servir de intérprete para Will.
— Édipo está perguntando o que foi que Deus lhe falou, e o outro está dizendo que, segundo Deus, tudo o que estava acontecendo era por causa de um homem que matara o velho rei, antecessor de Édipo, e que até agora não fora capturado. Deus também disse que esse homem ainda vive em Tebas, e que a virose que está matando todo o mundo é um castigo. É isso o que Creonte está dizendo. Não sei por que todo esse povo, que não tinha feito mal a ninguém, devia ser punido. Deus disse ainda que essa doença não acabaria enquanto o homem que matara o velho rei não fosse expulso de Tebas. Édipo está dizendo que tudo fará para encontrar o homem e que se livrará dele.
De seu canto na plataforma inferior do palco, o menino começou a declamar em inglês:
Enquanto o auditório ainda ria, um outro grupo de carpideiras surgiu de ambos os lados e atravessou lentamente o palco.
— Karuna! Compaixão! — disse a menina, que estava no primeiro plano. — Os ignorantes sofrem tanto quanto os outros.
Sentindo que lhe tocavam o braço, Will se voltou e ficou surpreso ao deparar com o rosto belo e mal-humorado do jovem Murugan.
— Tenho andado à sua procura — disse com um ar zangado, como se Will tivesse se escondido com o único propósito de irritá-lo. Falou tão alto que muitas cabeças se voltaram para pedir silêncio. Indiferente aos protestos, o rapaz continuou a ralhar: — Você não estava nem na casa do dr. Robert nem na de Susila.
— Silêncio! Silêncio!
— Silêncio! — gritou estentoricamente o basso profondo, do alto das suas nuvens. E acrescentou: — As coisas chegaram a tal ponto que Deus não consegue nem escutar a Sua própria voz.
— Escute, escute! — disse Will, associando-se ao riso geral.
Levantou-se e, seguido por Murugan e Mary Sarojini, dirigiu-
se manquejando para a saída.
— Não quer esperar para ver o fim? — perguntou a menina, e, voltando-se para Murugan, disse em tom de reprimenda:
— Você bem podia ter esperado!
— Meta-se com a sua vida! — respondeu Murugan de modo grosseiro.
Will pousou a mão sobre o ombro da menina, dizendo:
— Felizmente seu relato do fim foi tão real que não necessito vê-lo com meus próprios olhos. Além disso, Sua Majestade deve sempre ter a precedência — acrescentou com ironia.
Murugan retirou um envelope do bolso de um daqueles pijamas de seda branca que tanto haviam deslumbrado a pequena enfermeira, entregando-o a Will.
— É de minha mãe. É coisa urgente — ajuntou.
— Que perfume agradável! — comentou Mary Sarojini, aspirando a deliciosa aura de sândalo que se desprendia da carta da rani.
Will desdobrou três folhas de papel de carta azul-celeste, ornadas por cinco lótus dourados sob uma coroa real. Que profusão de palavras sublinhadas e de letras maiúsculas! observou Will ao começar a ler.
Ma Petite Voix, cher Farnaby, avait raison — COMO SEMPRE! Disseram-me várias vezes que Nosso Amigo Comum estava destinado a muito fazer pela pobre e pequenina Pala (com o auxílio financeiro que Pala permitirá que ele dê à Cruzada do Espírito) e também pelo MUNDO. Ao ler o telegrama (que me chegou às mãos graças ao fiel Bahu e a seu amigo diplomata em Londres), não fiquei surpreendida com a notícia de que Lorde A. tinha lhe conferido Plenos Poderes (sem mencionar os MEIOS) para entabular negociações na qualidade de seu representante. Os lucros obtidos não serão só dele, seus ou meus. Serão também do ESPÍRITO, pois embora trilhemos caminhos diversos, somos todos CRUZADOS!
Mas a chegada do telegrama de lorde A. não é a única notícia que tenho para lhe dar. Soube esta tarde (graças a Bahu) que se precipitam os acontecimentos que marcarão época na grande Evolução Histórica de Pala. Aliás, esses acontecimentos estão evoluindo com maior rapidez do que esperava. Devido em parte a razões políticas (a necessidade de renovar um declínio na popularidade do coronel D.), a razões Econômicas (Rendang não pode suportar os ônus da Defesa) e a razões Astrológicas (estes dias, segundo os entendidos, são singularmente favoráveis a uma associação entre Rams — eu e Murugan — e aquele típico Escorpião — o coronel D.), foi decidido que se antecipasse uma ação que fora planejada para o eclipse lunar do próximo mês de novembro.
Assim sendo, é essencial que nós três nos encontremos sem demora, para decidirmos sobre o que deve ser feito, visando estimular nossos interesses materiais e Espirituais. O «Acidente» que o trouxe às nossas praias neste Momento Crítico foi Decididamente Providencial, conforme você mesmo deve reconhecer.