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— Sim. Se não se importar de passar toda a noite acordado.

— Pelo contrário. Gostaria muito.

— Pode também achar que é a pior coisa que lhe poderia acontecer — advertiu Susila. — O moksha tanto pode levá-lo ao céu como ao inferno. Pode levá-lo aos dois lugares ao mesmo tempo, ou a um e a outro alternadamente. Se tiver sorte, ou se estiver realmente preparado, pode conduzi-lo além do céu e do inferno. Pode também’trazê-lo do «além do além» para o lugar de onde partiu. De volta para cá, para novo Rothamsted e para as suas obrigações habituais. A única alteração é que, a partir de seu regresso, suas obrigações usuais terão um cunho inteira mente diferente.

CAPÍTULO XV

Um, dois, três… O relógio da cozinha bateu doze vezes. Como pareciam inúteis desde que o tempo deixara de existir! As inoportunas batidas soaram ridículas no âmago de um «acontecimento» eternamente presente no Agora, que muda incessantemente e que é medido não em segundos e minutos, mas pelo que contém em beleza, significação, intensidade e em mistérios cada vez mais profundos.

— Êxtase luminoso! — Da superfície de seu cérebro, as palavras vinham a seus lábios como se fossem bolhas. Vinham à superfície e desapareciam no espaço infinito da luz viva que pulsava e respirava por trás de seus olhos semicerrados.

— Êxtase luminoso! — Não era possível exprimir-se melhor, pois diante desse «acontecimento» que, apesar de eterno, estava sempre em mutação, as palavras não passavam de caricaturas e eram incapazes de exprimir seu verdadeiro sentido. O «acontecimento» não era apenas êxtase; também era compreensão. Uma compreensão total, inteiramente destituída de qualquer conhecimento. O saber implica a existência de alguém que conheça toda a infinita variedade de coisas conhecidas e conhecíveis. Mas, naquele momento, atrás de suas pálpebras cerradas não havia espetáculo nem espectador: somente a sensação de estar completamente identificado com o êxtase.

Numa sucessão de revelações, a luz ficou mais intensa, a compreensão se aprofundou e o êxtase atingiu tal intensidade que se tornou insuportável.

— Meu Deus! — disse para si mesmo. — Oh! Deus meu!

Nesse instante, como se tivesse vindo de outro mundo, ouviu a voz de Susila:

— Gostaria de me dizer o que está acontecendo?

Passou-se um longo tempo antes que Will respondesse. O ato de falar se tornara difícil. Não que houvesse qualquer impedimento orgânico, mas porque as palavras lhe pareciam vazias e completamente sem sentido.

— Luz! — murmurou finalmente.

— Você a está vendo?

— Não. Ela está em mim! Está em mim! — repetiu com ênfase.

Sua presença implicava sua ausência. Em essência, a pessoa de William Asquith não existia. Somente existia um êxtase luminoso, uma compreensão sem sabedoria e uma fusão com a unidade através dos limites imprecisos de sua consciência. Era óbvio que este devia ser o estado normal da mente. Mas não se podia negar a existência daquele espectador profissional de execuções, daquele desprezível que se viciara em Babs. Existiam também três bilhões de consciências isoladas, cada uma delas vivendo no centro de um mundo de pesadelo e no qual era totalmente impossível que qualquer pessoa, capaz de enxergar e dotada de um mínimo de honestidade, pudesse aceitar o «sim» como resposta. Qual o milagre sinistro que transformara o estado natural da mente nessas «ilhas demoníacas» de mesquinharia e de crimes?

No firmamento do êxtase e da compreensão, como se fossem morcegos no crepúsculo, conceitos e restos de sentimentos passados se entrecruzavam com violência. «Pensamentos— morcegos» de Plotinus, dos gnósticos. Emanações do único. Mergulhos cada vez mais profundos na espessa camada de horrores. «Sentimentos-morcegos» de ódio e de nojo, à medida que a camada de horrores se converteu em recordações específicas de tudo aquilo que o inexistente William Asquith Farnaby tinha visto, tinha infligido e tinha sofrido.

Mas, por trás desses pensamentos vacilantes, envolvendo-se e chegando mesmo a se integrar neles, estava o firmamento do êxtase, da paz e da compreensão. Não importava que houvesse alguns morcegos naquele céu de crepúsculo; o fato era que o terrível milagre da criação havia sido subvertido. O seu eu sobre-humanamente vil e criminoso foi desfeito e em seu lugar surgiu a mente em toda a sua pureza. A mente tal qual é, em seu estado naturaclass="underline" ilimitada, indistinta, radiosamente feliz e dotada de uma compreensão que não é fruto do saber.

A luz estava aqui, neste momento. E porque estava infinitamente próximo neste eterno Agora, nada existia além dela e por isso ninguém podia vê-la. Toda a realidade se resumia no conhecimento de sua presença e nesse conhecimento se resumia toda a realidade.

De alguma parte desse outro mundo que ficava além da luz, chegou o som da voz de Susila:

— Você está feliz? — perguntou.

Uma onda de radiação mais brilhante varreu para longe todos os pensamentos e lembranças vacilantes. Só restou a cristalina transparência do êxtase.

Sem ao menos falar ou descerrar as pálpebras, meneou a cabeça afirmativamente.

— Eckhart chamou-a «Deus» — continuou Susila. — É uma felicidade tão arrebatadora, de intensidade tão inconcebível, que se torna impossível descrevê-la. E, no meio dessa felicidade, Deus brilha e Se inflama sem cessar.

Deus brilha e Se inflama…

Will riu alto, pois a veracidade dessa afirmação lhe pareceu comicamente acertada.

— Deus, como se fosse uma casa se incendiando — disse ofegante. — Deus em quatorze de julho.

Mais uma vez explodiu numa risada cósmica.

Atrás de suas pálpebras cerradas, um oceano de felicidade radiosa jorrava de forma ascendente, parecendo uma catarata cujo curso tivesse se invertido. Jorrava de baixo para cima como se fosse uma união em busca de algo mais completo. Da impessoalidade para uma forma ainda mais absoluta de transcendência. Repetiu:

— Deus — em — quatorze — de — julho. — E no meio da catarata explodiu uma risada final de reconhecimento e de compreensão.

— E em quinze de julho? Que sucederá na manhã seguinte? — indagou Susila.

— Não haverá manhã seguinte.

Ela balançou a cabeça e disse:

— Isso se parece muito com o nirvana.

— E o que há de mal nisso?

— O Espírito Puro (o espírito a cem graus)’é uma bebida que somente os mais empedernidos beberrões-contemplativos se permitem. Os Bodhisattvas diluem seu nirvana em partes iguais de amor e de trabalho.

— Assim fica melhor — insistiu Will.

— Você quer dizer que é mais delicioso e por isso constitui uma tentação tão grande. A única tentação à qual Deus poderia sucumbir. O fruto da ignorância do que seja o bem e o mal. Que doçura celestial! Que «supermanga»! Deus vinha se alimentando dela havia milhões de anos. De repente surge o Homo sapiens, surge o conhecimento do bem e do mal. Deus teve de comer uma nova espécie de fruto menos saboroso. Você acaba de comer apenas uma fatia do «superfruto» e por isso pode compadecer-se d’Ele.

O ranger de uma cadeira. Um farfalhar de saias. Uma série de pequenos ruídos que ele não conseguia identificar. O que é que ela estaria fazendo? Poderia obter resposta para essa pergunta com o simples abrir de seus olhos. Mas, no final das contas, que importância tinha isso? Com exceção dessa abrasante torrente ascendente de êxtase e compreensão, nada era importante.

— O «superfruto» do saber. Eu o afastarei dele gradativamente — disse Susila.

Ouviu um chiado. Da superfície de seu cérebro, uma bolha de reconhecimento atingiu sua zona de consciência. Susila colocara um disco na vitrola.

— Johann Sebastian Bach — ouviu-a dizer. — É a música mais próxima do silêncio. Apesar de tão organizada, é a que está mais próxima do Espírito com cem graus de pureza.