— Preste atenção — sussurrou ela.
Era impossível não prestar atenção. No entanto, suave e delicadamente, os dedos dela se aprofundaram na parte mais viva de sua consciência. E como estava alerta! Como podia sentir, neste momento, onde estavam aqueles dedos! Que estranho e quente formigamento fluía deles!
— Parece uma corrente elétrica — comentou deslumbrado.
— Mas felizmente esses fios não levam qualquer mensagem. No momento em que se tocam, no simples ato de tocar, se é tocado. Há uma comunicação completa, mas nada é transmitido. Somente uma troca de vida. — Fez uma pausa e continuou: — Você percebeu que durante todas estas horas que passamos sentados aqui (no seu caso, durante todos estes séculos… todas estas eternidades) não olhou para mim uma só vez? Nem uma só vez! Está com medo do que possa ver?
Will pensou sobre a pergunta e finalmente concordou com um sinal de cabeça.
— Sim. Pode ser que seja isso. Talvez porque esteja com medo de ver alguma coisa com a qual tenha que me envolver. Alguma coisa que me obrigue a tomar uma atitude…
— Foi por isso que ficou preso a Bach, às paisagens e à Grande Luz do Vazio!
— Para os quais você não me permitiu continuar olhando — reclamou ele.
— Simplesmente porque o Vazio não lhe seria benéfico, a não ser que você pudesse ver sua luz nos gongylus gongyloides. E nas pessoas, o que às vezes é bastante difícil.
— Difícil? — Will pensou nas colunas de homens em marcha, nos corpos refletidos no espelho, em todos aqueles outros com os rostos enterrados na lama, e balançou a cabeça. — É impossível.
— Não, não é impossível — insistiu Susila — Karuna está contido no sunyata. O Vazio é a luz, mas também é compaixão. Os contemplativos (gananciosos e ávidos) querem a luz sem se preocuparem com a compaixão. As pessoas que se contentam em ser simplesmente boas, tentam ser apenas compassivas e se recusam a se preocupar com a luz. Como sempre, tudo é questão de saber como fazer uso dos dois mundos… Mas está na hora de abrir os olhos e ver qual a aparência verdadeira de um ser humano.
As pontas dos dedos se moveram das pálpebras para as têmporas e depois se dirigiram para as faces e para os ângulos da mandíbula. Decorridos alguns instantes, Will sentiu que tocavam seus próprios dedos e que suas mãos estavam seguras entre as dela.
Will abriu os olhos e, pela primeira vez desde que tinha tomado o moksha, se surpreendeu a olhar atentamente o rosto de Susila.
— Deus meu! — sussurrou finalmente.
Susila sorriu.
— É tão mau como a sanguessuga? — perguntou.
Mas isso não era assunto para brincadeira. Will balançou a cabeça com impaciência e continuou a olhá-la. As órbitas, envoltas em sombras, pareciam misteriosas. Exceto por uma pequena meia-lua de luz na altura do malar, toda a face direita estava envolta em sombras. O lado esquerdo brilhava com uma radiância dourada — um brilho sobrenatural que não era nem o clarão vulgar e sinistro da escuridão visível, nem tampouco aquela abençoada incandescência revelada na distante alvorada da eternidade que existia por trás das pálpebras fechadas, quando ao abri-las deparou com os «livros-jóias», com as composições de cubistas místicos e com a paisagem transfigurada. O que estava vendo agora era o paradoxo de opostos indissoluvelmente ligados: de luz se irradiando da escuridão e de escuridão no âmago da luz.
— Não é o sol… não é Chartres — disse afinal. — Graças a Deus, também não é a venda de saldos do subsolo. É tudo isso junto e a identifico como você mesma e consigo reconhecer a mim mesmo. Este comentário parece supérfluo desde que somos tão completamente diferentes. Você e eu pintados por Rembrandt, mas por um Rembrandt que fosse cinco mil vezes mais ele mesmo. — Fez uma pausa rápida, depois balançou afirmativamente a cabeça e prosseguiu: — É isso mesmo. Sol em Chartres, janelas de vidros coloridos no subsolo onde estão fazendo uma venda de saldos e que é ao mesmo tempo a câmara de tortura, o campo de concentração, o cemitério com enfeites de árvores de Natal. E agora o subsolo dos saldos dá uma marcha à ré, capta Chartres e uma fatia de sol e chega até aqui; chega a você e a mim, pintados por Rembrandt. Será que entende o que quero dizer?
— Perfeitamente — disse ela.
Mas Will estava muito ocupado em olhá-la e não conseguia prestar atenção ao que ela estava dizendo.
— Você é tão incrivelmente bela! Mas se fosse incrivelmente feia não teria a menor importância; continuaria sendo o quadro de um Rembrandt cinco vezes mais autêntico. Bela, bela! — repetiu. — NO entanto, não quero dormir com você. Não, isto não é verdade. Gostaria de dormir com você. Gostaria muito. Contudo, se não dormir, isso não fará a menor diferença. Continuarei a amá-la, a amá-la do modo por que um Cristão deve amar seus semelhantes. Amor, repetiu, amor… É outra daquelas palavras sujas. «Apaixonado», «fazer amor», isso é uma obscenidade que não consigo pronunciar. Mas agora, agora… — Sorriu e balançou a cabeça. — Acredite ou não, agora posso entender o que quer dizer «Deus é amor». Que contra-senso! No entanto é a verdade. Enquanto isso, aí está esse seu rosto maravilhoso.
— Ele se inclinou para a frente a fim de olhá-la mais de perto.
— É como se estivesse olhando numa bola de cristal, onde sempre existe algo de novo — acrescentou incredulamente. — Você não pode imaginar…
Mas ela podia imaginar.
— Não se esqueça de que também estive lá — disse Susila.
— Olhou para o rosto das pessoas?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Olhei meu rosto no espelho. Também olhei o de Dugald. Meu Deus, a última vez que tomamos juntos o moksha! Ele começou parecendo um herói de alguma mitologia impossíveclass="underline" de indianos na Islândia, de vikings no Tibete. E, sem qualquer aviso prévio, passou a ser Buda Maitreya. Buda Maitreya, sem a menor sombra de dúvida. Quanto esplendor! Eu ainda posso ver.
Susila interrompeu o que estava dizendo e Will se surpreendeu a olhar a Encarnação da Perda, com sete espadas no coração. Lendo os sinais de dor nos olhos escuros e nos cantos daquela boca de lábios cheios, ele descobriu que a ferida tinha sido quase mortal e que ainda estava aberta e sangrando. Ao fazer essa descoberta, sentiu um aperto no coração. Apertou as mãos dela. Não havia nada que se pudesse dizer, nenhuma palavra, nenhuma consolação filosófica — apenas essa misteriosa solidariedade táctil, essa comunicação de uma pele com outra através de um influxo interminável.
— As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade… Com demasiada facilidade e com muita freqüência — disse ela. Dando um longo suspiro, endireitou os ombros.
Diante de seus olhos, o rosto etodo o corpo sofreram outra transformação. Sob aquela aparência frágil havia bastante força para enfrentar qualquer sofrimento. Uma vontade capaz de sobreviver a todos os golpes com que o destino a quisesse ferir. Quase ameaçadora em sua obstinada serenidade, uma deusa escura e sedutora tomara o lugar da Mater Dolorosa. Lembrou-se imediatamente daquela voz calma que falava de modo tão irresistível a respeito dos cisnes e da catedral, das nuvens e das águas plácidas. À medida que recordava, o rosto que tinha diante de si parecia brilhar com a consciência do triunfo. Viu a expressão do poder intrínseco. Sentiu sua presença grandiosa e se afastou dele.
— Quem é você?