Ela olhou-o em silêncio por um momento e depois sorriu alegremente.
— Não fique tão amedrontado. Não sou a fêmea do louva-a-deus.
Will retribuiu o sorriso alegre da menina que gostava de beijos e que tinha a coragem de pedi-los.
— Graças a Deus! — disse-lhe Will. E o amor, que tinha fugido amedrontado, começou a voltar nas ondas de um mar de felicidade.
— Por que está dando graças?
— Por ter lhe concedido a bênção da sensualidade.
Ela sorriu de novo.
— Quer dizer que esse gato saiu do saco!
— Todo aquele poder… Toda aquela admirável e terrível força de vontade… Você poderia ter sido Lúcifer, mas feliz e providencialmente… — Ele libertou sua mão direita e, com a ponta do indicador, tocou os lábios dela. — A dádiva abençoada da sensualidade tem sido sua salvação. Metade de sua salvação — acentuou ao se lembrar daqueles horríveis frenesis destituídos de amor que vivera na alcova cor-de-rosa. — Uma de suas salvações. Porque é certo que existe essa outra coisa que é o fato de você saber quem realmente é. — Ficou em silêncio por alguns instantes e continuou: — Mary com espadas trespassadas no coração, Circe e Ninon de Lenclos também com espadas no coração. Quem seria o próximo? Alguém como Juliana da Noruega ou Catarina de Gênova? Será que você é essa gente toda?
— Tudo isso e também uma idiota e uma mãe bastante preocupada e não muito eficiente. Acrescente a isso a criança pretensiosa e sonhadora, e provavelmente também aquela velha agonizante que ficou olhando para mim do espelho, na última vez que tomamos juntos o moksha. Foi naquela ocasião que Dugald olhou e viu como ele seria daqui a quarenta anos. Menos de um mês depois, estava morto.
As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade e com tanta freqüência… Metade de seu rosto estava envolta em sombras e a outra irradiava uma luz dourada. Seu rosto se converteu, uma vez mais, numa máscara de sofrimento. Will pôde ver que, dentro das órbitas sombrias, seus olhos estavam fechados. Tinha retrocedido para outras épocas e estava só em algum lugar. Só com as espadas e a ferida aberta. Lá fora, os galos voltaram a cantar e um segundo mainá começou a pedir compaixão num semitom acima do primeiro.
— Karuna!
— Atenção! Atenção!
— Karuna!
Will levantou a mão e, mais uma vez, tocou os lábios de Susila.
— Está ouvindo o que eles estão dizendo?
Decorreu longo tempo antes que respondesse. Levantando a mão, segurou o dedo estendido de Will e com ele pressionou o próprio lábio inferior.
— Muito obrigada — disse ao abrir os olhos.
— Por que está me agradecendo? Foi você quem me ensinou o que fazer.
— Agora é sua vez de ensinar à professora.
Como um par de «gurus» rivais, cada um apregoando sua marca de espiritualidade, os mainás continuavam a gritar «Karunal» e «Atenção!» Depois, como se cada um deles quisesse afugentar a sabedoria do outro, através da vitória nessa competição, gritavam «Runattenshkarattunshon». Proclamando suas qualidades de senhor eternamente potente de todas as fêmeas e de adversário invencível de qualquer pretendente espúrio que desafiasse sua virilidade, um frango apregoava esganiçadamente seus poderes divinos.
Um sorriso quebrou a máscara do sofrimento; de seu mundo particular de espadas e recordações, Susila voltou ao presente.
— Cocorocó! Como gosto desse frango! Parece Tom Krishna quando sai pedindo às pessoas que sintam como seus músculos estão desenvolvidos. E esses ridículos mainás sempre a repetirem fielmente o bom conselho que não podem entender. São tão adoráveis como meu «galinho-valente».
— Que me diz da outra espécie de bípede? Daqueles da espécie menos adorável? — perguntou Will.
À guisa de resposta, ela se inclinou para diante, pegou-o pelos cabelos e, puxando sua cabeça para baixo, beijou-o na ponta do nariz.
— Já é hora de mover as pernas. — Levantando-se, estendeu-lhe a mão. Após segurá-lo, Susila ajudou-o a se levantar da cadeira.
— Cantiga contraproducente e anti-sabedoria papagaiada. Isso é o que alguns dessa outra espécie de bípede gostam de fazer.
— Qual a garantia que tenho de que não voltarei a vomitar?
— É provável que isso volte a acontecer — disse Susila alegremente. — Mas também é provável que volte ao estado de espírito que tem neste momento.
Algo moveu-se rapidamente, próximo aos pés de ambos.
Will deu uma gargalhada.
— Lá se vai a minha pobre e pequena encarnação rastejante do mal.
Ela segurou seu braço e ambos caminharam em direção à janela aberta. Anunciando a próxima aparição da aurora, um vento fraco e vacilante fazia rufiar as copas das palmeiras. Abaixo de onde estavam, enraizada invisivelmente na terra úmida e de cheiro acre via-se uma touceira de hibisco — uma profusão selvagem de folhas lustrosas e de cornetas rubras que um feixe de luz vindo da sala punha em destaque, no meio da dupla escuridão formada pela noite e pelas frondosas árvores.
— Não é possível — foi o comentário incrédulo de Will. — Estava novamente com Deus no dia quatorze de julho.
— Não é possível — concordou Susila. — Mas, como tudo na vida, isto é um fato. E agora que você finalmente reconheceu minha existência, lhe darei permissão para olhar o conteúdo de seu coração.
Ele parou imóvel a fitar uma interminável sucessão de intensidades crescentes e cheias de um significado cada vez mais profundo. Lágrimas encheram seus olhos e finalmente escorreram por seu rosto. Tirando um lenço do bolso, começou a enxugá-las.
— Não posso evitá-las — disse Will em tom de desculpa. Não podia evitá-las porque não havia outro meio como expressar sua gratidão. Gratidão pelo privilégio de estar vivo e de ser uma testemunha desse milagre de ser. Na verdade, mais do que uma simples testemunha, era uma parte desse milagre. Gratidão por essas dádivas de êxtases luminosos, de conhecimento e de compreensão. Gratidão por ter sido, ao mesmo tempo, essa união com a unidade divina e uma criatura finita entre outras também finitas. Por que choramos quando somos gratos? — perguntou enquanto guardava o lenço. — Só Deus sabe. Mas sempre choramos. — Uma «bolha» de recordação emergiu do depósito de coisas que lera. — A gratidão é o próprio céu — citou. — Simples algaravia! Mas agora vejo que Blake se limitou a registrar simples ocorrências. A gratidão é o próprio céu.
— E ainda mais celestial por ser o céu na terra e não o céu no céu.
Surpresos, ouviram o som distante de um tiroteio que dominava o canto dos galos, o coaxar dos sapos, o ruído dos insetos e o dueto dos «gurus» rivais.
— O que é isso? — perguntou Susila.
— São os garotos brincando com fogos de artifício — disse Will alegremente.
Susila balançou a cabeça.
— Nós não estimulamos essa espécie de fogos. Nem mesmo os possuímos.
Da rodovia além dos limites do acampamento, o rugir de veículos pesados subindo em primeira se tornava cada vez mais audível. Dominando o barulho, uma voz ao mesmo tempo estentórea e esganiçada vociferava de modo incompreensível através do alto-falante.
Em suas molduras de sombras de veludo, as folhas pareciam delgadas lâminas de jade e esmeralda, e do fundo desse fantástico luzir de pedras preciosas despontavam rubis esculpidos em forma de estrelas de cinco pontas. Gratidão, gratidão! Os olhos de Will tornaram a se encher de lágrimas.
Fragmentos do vociferar esganiçado se transformaram em palavras compreensíveis e, contra sua própria vontade, ele se surpreendeu a escutá-las.
— Povo de Pala… — E a voz ampliada explodiu em sons inarticulados. Guinchos, rugidos, novos guinchos, e então: — O seu rajá lhes fala… Permaneçam calmos… Dêem as boas-vindas a seus amigos da outra margem do estreito.