De súbito percebi o cômico de minha situação: durante anos havia estudado e trabalhado para poder visitar o futuro e agora estava numa ansiedade louca para sair dele. Eu próprio havia construído a armadilha mais complicada e mais desesperadora que alguém já imaginara. E não podia fazer nada por mim mesmo. Ri às gargalhadas.
Ao atravessar o grande palácio, pareceu-me que as criaturas me evitavam. Podia ser apenas impressão minha, ou podia ter algo a ver com as minhas marteladas nas portas de bronze do pedestal. Fosse qual fosse o motivo, não havia dúvida de que fugiam de mim. Tive, no entanto, o cuidado de não me mostrar preocupado e abstive-me de qualquer perseguição a elas.
Ao fim de um ou dois dias, as coisas voltaram ao que eram antes. Fiz os progressos que pude para aprender a língua e aproveitei para estender o âmbito de minhas explorações. A menos que me tivesse escapado alguma particularidade sutil, a língua daquelas criaturinhas era excessivamente simples — compunha-se, quase que só, de substantivos concretos e de verbos. Havia poucos termos abstratos, se 6 que os havia, e empregavam muito pouco a linguagem figurada. Suas frases eram habitualmente muito reduzidas, de duas palavras, e eu não conseguia transmitir nem compreender a não ser as proposições mais elementares. Decidi relegar a um canto da memória a minha preocupação com a Máquina do Tempo e o mistério das portas de bronze sob a Esfinge, até que pudesse reunir conhecimentos suficientes para voltar ao problema de uma forma natural. Mas, como vocês podem compreender, um certo sentimento me retinha num círculo de poucas milhas em torno do ponto de minha chegada.
CAPÍTULO 7
Até onde a vista alcançava, toda a terra apresentava a mesma exuberante riqueza do vale do Tâmisa. Do alto de todas as colinas que subi, vi a mesma abundância de belos edifícios, infinitamente variados em material e estilo, as mesmas formações de coníferas, as mesmas árvores cobertas de flores. Aqui e ali, a água brilhava como prata e, mais ao longe, a terra elevava-se em ondulações de colinas azuladas, até fundir-se na serenidade do céu. Um aspecto singular, que logo me atraiu a atenção, foi a presença de certos poços circulares, alguns deles, ao que me pareceu, de grande profundidade. Um desses poços se encontrava na vereda para a colina que eu havia seguido quando de minha primeira caminhada. Como os demais, tinha na borda uma cercadura de bronze curiosamente trabalhada e era protegido da chuva por uma pequena cúpula. Sentava-me à beira desses poços e perscrutava a profunda escuridão, sem ver o menor reflexo de água, nem mesmo acendendo um fósforo. Mas em todos eles ouvia um ruído, um ronco surdo e ritmado como o de uma grande máquina. E descobri, também, pela chama dos fósforos, que havia uma permanente corrente de ar nos poços. Joguei um pedaço de papel num deles e, em vez de flutuar e cair lentamente, foi aspirado de uma vez só e desapareceu de minha vista.
Não tardei a estabelecer uma relação entre esses poços e as torres altas que havia aqui e ali nos declives, pois sobre elas se via com freqüência essa mesma vibração do ar que se nota, num dia quente, sobre as praias ensolaradas. Juntando as coisas, formulei a hipótese de um extenso sistema de ventilação subterrâneo, cuja verdadeira utilidade eu não conseguia discernir. A princípio, inclinei-me a associá-lo aos serviços sanitários daquela gente. Era uma conclusão evidente, mas absolutamente errada.
Devo admitir que fiquei sabendo muito pouco sobre o sistema de esgotos, os meios de transporte e outros serviços públicos, durante minha permanência nesse futuro real. Em algumas dessas concepções de Utopias e tempos futuros que tenho lido, há uma profusão de detalhes urbanísticos, sociológicos e que tais. Esses detalhes são muito fáceis de obter quando o mundo inteiro está contido dentro de nossa imaginação, mas são de todo inacessíveis ao viajante verdadeiro que, como eu, se vê jogado dentro da realidade. Imaginem o que um nativo da África Central, recém-chegado a Londres, poderia depois contar à sua tribo. Que saberia ele das estradas de ferro, dos movimentos sociais, do telégrafo e do telefone, da Companhia de Colis Postaux e coisas análogas? E, no entanto, qualquer um de nós se prontificaria a explicar-lhe tudo. Mesmo aquilo que ele soubesse, como faria para que seu amigo na África Central, que nunca esteve aqui, compreendesse ou acreditasse? Agora, imaginem a pequena distância que há entre um negro africano e um homem branco de nossa época, e o tremendo hiato a separar-me dessas criaturas da Idade de Ouro! Eu tinha consciência do muito que não via e que contribuía para meu conforto, mas, salvo quanto à impressão de uma organização automática, receio não ser capaz de lhes fazer sentir as diferenças.
No tocante aos mortos, por exemplo: não encontrava nada que parecesse forno de cremação ou túmulo. Mas isso não impedia que, para além do meu campo de exploração, houvesse áreas reservadas a cemitérios ou fomos crematórios. Foi essa uma das perguntas que me propus a responder, porém minha curiosidade a princípio ficou inteiramente insatisfeita. O fato me intrigava e levou-me a fazer outra observação, que me deixou ainda mais perplexo: entre essa gente não havia ninguém que fosse velho ou enfermo.
Devo confessar que minha satisfação com as teorias que formulei de início, sobre uma civilização automatizada e uma humanidade decadente, não durou muito. Contudo, eu não conseguia encontrar outra. Vou expor as minhas dúvidas. Os vários palácios que eu explorara eram simples residências, grandes salas de jantar e dormitórios. Neles não havia máquinas nem instalações de qualquer tipo. Apesar disso, essa gente se vestia de belos tecidos, que de tempos em tempos precisariam ser renovados; suas sandálias, embora sem maiores enfeites, exigiam para seu fabrico apetrechos de metal bastante complexos. Forçosamente essas coisas tinham de ser produzidas em algum lugar. E as pequenas criaturas não revelavam nenhum indício de pendores criativos. Não havia lojas, nem oficinas, nem sinal de atividades de importação. Passavam o tempo todo brincando despreocupadamente, tomando banho no rio, fazendo amor meio na brincadeira, comendo frutas e dormindo. Eu não conseguia descobrir a maneira como a engrenagem era mantida em funcionamento.
E, mais uma vez, a Máquina do Tempo: algo, eu não sabia o quê, a havia levado para dentro do pedestal oco da Esfinge Branca. Por quê? Quisera eu adivinhar. E aqueles poços sem água, aquelas colunas de ventilação. Sentia que me faltava uma pista. Sentia.. como explicar? Vamos supor que vocês encontram uma inscrição gravada em excelente inglês, mas com as frases entremeadas de palavras, e mesmo de letras, totalmente desconhecidas. Bem, no terceiro dia de minha visita, era exatamente assim que se apresentava o mundo de Oitocentos e Dois Mil Setecentos e Um!
Também nesse dia arranjei uma amiga — vamos dizer assim. Aconteceu que, enquanto eu observava algumas dessas criaturas que tomavam banho no rio, uma delas foi tomada de cãibras e começou a ser arrastada pela correnteza. Esta era rápida, mas não forte demais, mesmo para um nadador modesto. Vocês poderão formar uma idéia da estranha alienação dessas criaturas quando eu lhes disser que nenhuma delas fez a mais leve tentativa para salvar a companheira que gritava e estava se afogando diante de seus olhos. Quando o percebi, mais que depressa tirei a roupa e, entrando na água um pouco abaixo, recolhi a infeliz e trouxe-a a salvo para a margem do rio. Com algumas fricções logo voltou a si, e eu tive a satisfação de ver que ela já estava boa quando a deixei. Eu já formara uma opinião tão negativa sobre os de sua espécie que não esperei nenhuma gratidão por parte dela. Desta vez, no entanto, eu me enganei.
Isso aconteceu pela manhã. À tarde, quando voltava de uma exploração, reencontrei minha pequenina mulher, como acredito que era, e ela me recebeu com gritos de alegria e ofereceu-me uma bela guirlanda — feita visivelmente para mim e para mim unicamente. O episódio me empolgou a imaginação. É bem possível que eu estivesse me sentindo muito abandonado. O certo é que fiz todo o possível para demonstrar-lhe como eu gostara do seu presente. Logo nos vimos sentados num banquinho de pedra sob um caramanchão, travando uma conversa feita sobretudo de sorrisos. Os gestos de afeto daquela criatura me tocavam exatamente como o teriam feito os de uma criança. Trocávamos flores, e ela me beijava as mãos. Eu beijava as mãos dela. Depois tentei um diálogo. Soube que se chamava Weena, nome que me pareceu bastante adequado, embora eu ignorasse o que significava. Esse foi o começo de uma curiosa amizade, que durou uma semana e terminou como depois lhes contarei!