Ela era tal qual uma criança. Queria estar comigo o tempo todo. Procurava seguir-me por toda parte. Em minhas caminhadas exploratórias, partia-me o coração vê-la ficar para trás, exausta, a chamar-me chorosamente. Mas eu tinha de deixá-la, porque os problemas desse mundo precisavam ser aclarados. Eu não viera ao futuro, dizia a mim mesmo, para me entregar a um namoro em miniatura. Sua tristeza quando eu a deixava era muito grande, suas recriminações chegavam a ser frenéticas, e penso que, todas as contas feitas, seu devotamento me trouxe tanto de aborrecimentos quanto de satisfação. Mas ela não deixava de me servir de grande conforto moral. Eu julgava que ela se agarrava a mim por mera afeição infantil. Até quando já era tarde demais, eu não me dei conta, claramente, do mal que lhe fazia quando a deixava. E também só quando já era tarde demais é que compreendi claramente o que ela significava para mim. Porque, pelo simples fato de parecer apaixonada por mim e demonstrar, à sua maneira tão frágil e frívola, que se preocupava comigo, aquele pedacinho de gente acabou dando ao meu retorno às proximidades da Esfinge Branca, todos os dias, quase a impressão de um regresso ao lar. E do alto da colina eu já procurava com os olhos a sua pequenina figura pálida e loura.
Foi também através dela que descobri que o medo ainda não havia desaparecido da terra. Durante o dia mostrava-se tranqüila e tinha em mim a mais irrestrita confiança; pois certa vez, num momento de irritação, eu lhe fiz caretas ameaçadoras, e ela simplesmente se pôs a rir. Mas ela temia o escuro, temia as sombras, temia tudo que fosse preto. As trevas eram para ela a única coisa apavorante. Era um sentimento profundamente arraigado, o que me fez pensar e observar. Descobri, então, entre outras coisas, que esses pequenos seres, assim que anoitecia, juntavam-se no interior dos edifícios e ali dormiam em grandes grupos. Entrar no meio deles sem uma luz na mão era lançá-los no maior pânico. Jamais encontrei algum do lado de fora, ou dormindo sozinho, durante a noite. No entanto, minha estupidez não me deixou aprender a lição desse medo e, a despeito da aflição de Weena, eu insistia em dormir afastado daquelas multidões.
Ela ficava muito angustiada, mas sua estranha afeição por mim acabou triunfando e, em cinco das noites que durou a nossa ligação, incluindo a última, ela dormiu com a cabeça repousando no meu braço. Mas, falando dela, eu me desvio de minha história.
Deve ter sido na noite anterior ao salvamento de Weena. Acordei de madrugada. Tinha estado inquieto, e tivera um sonho dos mais desagradáveis, no qual eu me afogava e sentia o rosto apalpado pelos moles tentáculos de anêmonas-do-mar. Acordei sobressaltado e com a, esquisita impressão de que um animal pardacento acabava de fugir do quarto. Tentei dormir novamente, mas me sentia nervoso e indisposto. Era essa hora indecisa em que os objetos começam a tomar corpo nas trevas, em que nada tem cor definida, e tudo está ainda envolto numa aura de irrealidade. Levantei-me, atravessei a grande sala de jantar e detive-me na escadaria do palácio. Como não havia outro remédio, decidi esperar ali pelo nascer do sol,
A lua se punha e sua luz mortiça misturava-se com os primeiros palores da aurora para dar uma semiclaridade espectral. As moitas de arbustos eram pretas como breu, o solo pardo e sombrio, o céu descorado e lúgubre. Olhei para a colina e acreditei ver fantasmas. Virei-me repetidamente naquela direção e, cada vez, distinguia vultos brancos. Duas vezes pareceu-me ver uma criatura branca, simiesca, correndo sozinha pela encosta; e uma vez, perto das ruínas, vi um grupo carregando um volume escuro. Eles se moviam com muita pressa. Não pude segui-los com a vista. Como que desapareceram por entre os arbustos. Era ainda madrugada, como vocês podem compreender, e eu experimentava essa sensação gélida, indefinida, de antes do amanhecer. Duvidava de meus olhos.
Para os lados do levante, o céu começou a clarear, a luz do dia jorrou, e o mundo mais uma vez se cobriu de cores vivas. Examinei meu campo de visão com o maior cuidado. Não lobriguei mais vestígios dos vultos brancos. Eram meras visões do lusco-fusco matinal.
«Devem ser espíritos», falei com os meus botões. «Imagino como devem ser velhos!»
É que me viera ao pensamento, divertidamente, uma teoria de Grant Allen (Grant Allen (1848–1899), escritor canadense radicado na Inglaterra; começou escrevendo trabalhos científicos, depois S9 dedicou à ficção, deixando numerosos livros. No mesmo ano do aparecimento de A Máquina do Tempo (1895), publicou o romance The British Barbarians, em que um viajante do Futuro faz um percurso inverso ao do personagem de Wells, vindo do século 25 para visitar a Inglaterra do século 19. - N. do T.): segundo ele, se cada geração, ao morrer, deixa seus espíritos, o mundo acabará ficando apinhado deles. Em oitocentos mil anos, o seu número seria incalculável e, assim, não haveria nada de assombroso que eu visse quatro de uma só vez. Mas a pilhéria era pouco convincente e eu continuei a pensar nesses vultos durante toda a manhã, até que o quase afogamento de Weena e seu salvamento me fizeram esquecer o fato. Associei-os vagamente ao animal de cor clara que eu tinha assustado quando da procura frenética da Máquina do Tempo. Weena os substituiu agradavelmente no meu espírito. Mas, apesar disso, eles estavam destinados a ocupar, muito breve, o centro dos meus pensamentos e de uma forma infinitamente mais apavorante.
Penso que já mencionei que a temperatura na Idade de Ouro era muito mais alta do que a de hoje. Não sei como explicar. Talvez o sol estivesse mais quente, ou a Terra mais próxima do sol. É comum supor-se que este ficará cada vez mais frio no futuro. Mas as pessoas não familiarizadas com especulações como as de Darwin, o Moço, (Refere-se a Sir George Howard Darwin (1845–1912), segundo filho de Charles Darwin, e astrônomo de grande nomeada no seu tempo. - N. do T), esquecem que os planetas acabarão caindo de volta no corpo de que se formaram. Quando essas catástrofes ocorrerem, o sol brilhará com renovada energia; e é possível que algum planeta interior houvesse tido esse destino. Qualquer que seja o motivo, o fato é que o sol estava muito mais quente do que hoje.
Mas prossigamos. Certa manhã de muito calor — creio que foi a quarta — estava eu procurando abrigo contra a soalheira numa enorme ruína perto daquele edifício onde comia e dormia, quando aconteceu um fato extraordinário: ao escalar os montões de alvenaria, deparei-me com uma galeria estreita cuja extremidade, bem como as aberturas laterais, estavam obstruídas por desmoronamentos. Devido ao contraste com a intensidade da luz lá fora, ela me pareceu a princípio impenetravelmente escura. Entrei às apalpadelas, pois a passagem da claridade para as trevas me fazia ver manchas coloridas dançando diante de mim. De chofre parei, surpreso. Um par de olhos, luminosos devido ao reflexo da luz vinda do exterior, observava-me da escuridão.
O velho medo instintivo que temos dos animais selvagens me assaltou. Cerrei os punhos e fitei firmemente aqueles olhos brilhantes. Tive receio de voltar. Então me veio ao pensamento a absoluta segurança em que parecia viver a humanidade. E me lembrei do estranho terror que a escuridão inspirava àquela gente. Vencendo até certo ponto o meu medo, dei um passo à frente e falei. Admito que minha voz era áspera e não muito segura. Estendi a mão e toquei em alguma coisa macia. Imediatamente os olhos se desviaram e um vulto branco passou correndo por mim. Com o coração na boca, virei-me e vi uma estranha figura que lembrava um macaco, a cabeça abaixada de uma forma peculiar; atravessou, disparado, o espaço por trás de mim, exposto à luz do sol. Tropeçou num bloco de granito, cambaleou e, num ápice, desapareceu na escuridão de outro montão de escombros.