O triunfo absoluto da Humanidade, que eu havia sonhado, tomava uma conformação diferente no meu espírito. Não tinha sido, como eu imaginava, uma vitória da educação moral e da cooperação geral. O que eu via, em vez disso, era uma autêntica aristocracia, armada de uma ciência perfeita e agindo para levar a uma solução lógica o sistema industrial de nossos dias. Seu triunfo não tinha sido apenas sobre a Natureza, mas sobre a Natureza e o próximo.
Essa, devo adverti-los, era minha teoria naquela ocasião. Eu não tinha nenhum cicerone providencial, como acontece nos livros de Utopias. Minha explicação pode estar absolutamente errada. Mas acredito que é ainda a mais plausível. Porém, mesmo à luz dessa hipótese, a civilização equilibrada que por fim se tinha atingido devia desde muito ter ultrapassado o seu zênite, c estava agora em plena decadência. A segurança demasiado perfeita dos habitantes do Mundo Superior havia-os envolvido num lento processo de degenerescência, com uma redução geral da estatura, da força física e da inteligência. Isso eu podia constatar de forma suficientemente clara. O que acontecera aos habitantes do Mundo Subterrâneo eu ainda não suspeitava. Mas, pelo que tinha visto dos Morlocks — e este, a propósito, era o nome que se dava a essas criaturas —, podia facilmente imaginar que as modificações do tipo humano entre eles haviam sido muito mais profundas do que entre os «Elois», a bela raça que eu já conhecia.
Então sobrevieram as dúvidas inquietantes. Por que tinham os Morlocks levado minha Máquina do Tempo? Pois estava certo de que tinham sido eles. E por que, se os Elois eram os senhores, não podiam eles devolver-me a máquina? Por que tinham tanto medo da escuridão? Tentei, como disse, inquirir Weena sobre esse mundo subterrâneo, porém também ela me deixou frustrado. A princípio não conseguia entender minhas perguntas; depois, recusou-se a responder. Ela tremia como se o assunto lhe fosse insuportável. E quando a pressionei, talvez um pouco duramente, desfez-se em lágrimas. Foram essas as únicas lágrimas, exceto as minhas próprias, que vi nessa Idade de Ouro. Ao vê-la em prantos, parei imediatamente de atormentá-la com os Morlocks, e só me preocupei em fazer com que ela esquecesse esses testemunhos da herança humana. Em pouco tempo, Weena estava sorrindo e batendo palmas, enquanto eu acendia solenemente um fósforo.
CAPÍTULO 8
Poderá parecer-lhes estranho, porém só dois dias depois é que me dispus a seguir a nova pista do que era, sem dúvida alguma, o verdadeiro caminho. Eu sentia invencível repugnância por aqueles seres pálidos. Tinham exatamente a mesma cor esbranquiçada dos vermes e animais que são preservados em álcool nos museus de zoologia. Eram de uma frialdade repulsiva ao tato. Minha aversão provavelmente se devia em grande parte à minha simpatia pelos Elois, cujo asco pelos Morlocks eu começava a entender.
Naquela noite não dormi bem. Minha saúde por certo se achava um pouco afetada. Oprimiam-me dúvidas e perplexidades. Uma ou duas vezes assaltou-me uma sensação de profundo terror para a qual não encontrava razão definida. Lembro-me de que me esgueirei para dentro do salão onde as pequenas criaturas dormiam à luz do luar — nessa noite Weena estava com eles — e tranqüilizei-me ao vê-los. Nesse momento ocorreu-me que, dentro de poucos dias, seria lua nova, as noites ficariam totalmente escuras, e então seriam mais numerosas as aparições dessas desagradáveis criaturas subterrâneas, desses Lêmures brancacentos, desses novos bichos que haviam substituído os antigos.
Nesses dois dias acompanhou-me sem cessar a impressão de que eu estava procurando furtar-me a um dever inadiável. Estava convencido de que só recuperaria a Máquina do Tempo se penetrasse decididamente naqueles mistérios subterrâneos. No entanto, não me animava a enfrentar esses mistérios. Se pelo menos eu tivesse um companheiro, a coisa seria diferente. Mas eu estava horrivelmente só e a simples idéia de descer pela escuridão do poço me aterrorizava. Não sei se compreendem como eu me sentia, mas era como se houvesse um perigo sempre a ameaçar-me.
Foi essa inquietação, essa insegurança, talvez, que fizeram com que eu me distanciasse cada vez mais nas minhas caminhadas exploratórias. Dirigindo-me para sudoeste, no rumo da região montanhosa que hoje se chama Combe Wood, notei muito ao longe, na direção da atual Banstead, uma grande construção verde, de aspecto diferente de todas as que havia visto até então. Era maior do que os maiores palácios ou ruínas que eu conhecia, e a fachada ostentava um estilo oriental, com um acabamento que lembrava, pelo brilho do esmalte e pela tonalidade verde-pálido, verde-azulado, certo tipo de porcelana chinesa. Essa diferença de aspecto denotava diferença de uso, e eu me senti inclinado a estender até lá minha exploração. Mas já se fazia tarde, e eu chegara a esse lugar após longa e cansativa caminhada. Decidi, portanto, reservar a aventura para o dia seguinte, e voltei para a acolhida jubilosa e os carinhos de Weena. Mas, na manhã seguinte percebi claramente que minha curiosidade com relação ao Palácio de Porcelana Verde não era mais que outro pretexto, uma auto-sugestão para que eu adiasse por mais um dia minha temida incursão. Resolvi fazer a descida sem mais perda de tempo, e bem cedinho me encaminhei em direção a um poço nas proximidades dos escombros de granito e alumínio.
A pequena Weena acompanhou-me, a correr e â dançar, até o poço. Mas quando me viu inclinado por sobre a borda, olhando para baixo, pareceu extraordinariamente perturbada.
— Adeus, pequena Weena — disse-lhe eu, beijando-a; depois, recolocando-a no chão, comecei a procurar às apalpadelas por sobre o parapeito, os primeiros ganchos de descida. Eu tinha pressa, mas devo confessar, era somente porque temia que a coragem me fugisse! A princípio, Weena me olhou estarrecida. Depois, soltando um grito lamentoso, atirou-se sobre mim e procurou deter-me com todas as forças de suas mãozinhas. Acho que essa oposição foi o que me decidiu a prosseguir. Empurrei-a, talvez um pouco rudemente, e um momento depois me encontrava na boca do poço. Vi o rosto angustiado de Weena por sobre o parapeito e sorri-lhe para tranqüilizá-la. Depois me concentrei nos degraus inseguros em que me apoiava, e iniciei a descida.
Eram uns duzentos metros mais ou menos. Tinha de utilizar as barras metálicas fixas nas paredes do poço, e como elas se destinavam a criaturas menores e mais leves do que eu, logo me senti cansado e com cãibras. Mas não apenas cansado! Um dos degraus vergou subitamente sob o meu peso e por um triz não fui atirado nas profundezas da escuridão lá embaixo. Por um momento fiquei suspenso no ar por uma única mão, e depois desse susto não ousei mais parar para descansar. Embora sentisse uma grande dor nos braços e nos rins, continuei a descer o mais rápido que minhas forças permitiam. Olhando para cima, vi a abertura do poço como um pequeno disco azul, através do qual uma estrela ainda era visível, enquanto a cabeça de Weena se projetava redonda e escura. Vinha de baixo, cada vez mais forte e opressivo, o ruído regular de uma máquina. Tudo, exceto o pequeno disco lá em cima, estava em profunda escuridão; quando olhei novamente, Weena havia desaparecido.
Seguiu-se um momento de angustiante mal-estar. Pensei mesmo em tornar a subir, e deixar de lado o mundo subterrâneo. Porém, mesmo enquanto eu remoia essa idéia no meu espírito, continuava a descer. Por fim, com imenso alívio, distingui a pouca distância, à minha direita, uma exígua abertura na parede. Com um giro do corpo introduzi-me ali e descobri que era a entrada de um estreito túnel horizontal, no qual eu podia deitar-me e descansar. Já não era sem tempo. Os braços me doíam, sentia cãibras nas pernas e dor nas costas, e ainda tremia com o terror prolongado de me despencar no abismo. Ademais disso, a escuridão compacta me deixara os olhos doloridos. Ouvia-se agora perfeitamente o ronrom das máquinas bombeando o ar para dentro do poço.