Não havia dúvida de que estávamos entre os destroços de algum derradeiro Museu de História Natural! Ali onde nos achávamos era, evidentemente, a Seção de Paleontologia, e devia ter abrigado uma esplêndida coleção de fósseis, embora o inevitável processo de decomposição — detido por algum tempo e com noventa e nove por cento de sua força perdidos pela destruição das bactérias e dos fungos — houvesse retomado o seu trabalho, extremamente lento mas também extremamente seguro, sobre todos aqueles tesouros. Aqui e ali encontrei marcas da presença dos Elois na forma de delicados fósseis reduzidos a pedaços ou transformados num brinquedo de ossos enfiados num cordel. Algumas vitrinas haviam sido audaciosamente retiradas — pelos Morlocks, pensava eu. Reinava um grande silêncio. A densa camada de pó amortecia o ruído de nossos passos. Weena, que se entretinha a fazer rolar um ouriço-do-mar sobre o vidro inclinado de uma pequena montra, enquanto eu observava tudo em redor, parou de fazê-lo e veio para junto de mim, segurando minha mão, muito calada, e não se afastando mais.
De começo, eu estava tão surpreso com esse antigo monumento de uma era intelectual, que não pensei nas possibilidades que ele apresentava. Até a preocupação com a Máquina do Tempo recuou para um canto de minha mente.
A julgar por sua extensão, esse Palácio de Porcelana Verde devia conter mais do que uma Galeria de Paleontologia; talvez seções de História, e quem sabe até, uma biblioteca! Para mim, pelo menos naquelas circunstâncias, elas seriam muito mais interessantes do que ficar vendo os espécimes em decomposição de uma geologia do passado longínquo. Prosseguindo nas explorações, encontrei um galeria menor, transversal à primeira. Parecia dedicada aos minérios. Ao ver um bloco de enxofre, pensei logo em pólvora. Mas não encontrei salitre; na verdade, nenhuma espécie de nitrato. Sem dúvida se tinham dissolvido com o passar dos anos. O enxofre, porém, não me saiu do pensamento e desencadeou uma série de idéias. Quanto ao resto das exposições naquela sala — a mais bem conservada de todas as que vi — meu interesse era diminuto. Não sou especialista em mineralogia, e por isso me dirigi a outra galeria, paralela à primeira em que havia entrado, e cujo estado era lastimoso. Visivelmente ela se destinava à História Natural, mas tudo estava reduzido a alguns restos irreconhecíveis. Fragmentos enrugados e enegrecidos do que deviam ter sido animais empalhados, múmias exsicadas dentro de frascos que um dia continham álcool, montículos de poeira escura em que as plantas se haviam transformado; e era tudo! Isso me contristou, porque eu gostaria de poder identificar as etapas através das quais a natureza animada fora dominada pelo homem.
Chegamos a uma galeria de proporções simplesmente colossais, mas singularmente mal iluminada. O chão ali apresentava um declive que se acentuava da entrada para os fundos. O local devia ter tido iluminação artificial; do teto, a intervalos, pendiam globos brancos, muitos deles rachados ou semidestruídos. Ali eu me senti mais no meu elemento, pois de cada lado se elevavam massas enormes de máquinas gigantescas, todas já muito corroídas e muitas quebradas, mas algumas ainda quase perfeitas. Vocês bem conhecem o meu fraco pela mecânica, e eu estava propenso a demorar-me entre aquelas máquinas. Tanto mais que, na sua maioria, elas tinham para mim a sedução dos enigmas, pois eu só conseguia tecer conjecturas muito vagas sobre sua utilidade. Pensei, então, que se pudesse descobrir seus segredos, eu me acharia de posse de poderes valiosos para enfrentar os Morlocks.
Repentinamente, Weena se colou a mim. Tão repentinamente que me assustou. Não fora ela, penso que não teria notado que o chão da galeria formava uma rampa. A extremidade aonde eu chegara situava-se acima do solo, e era alumiada por umas poucas janelas estreitas. À proporção que se descia, no sentido do comprimento, o solo se elevava em relação a essas janelas, até que diante de cada uma delas se formava um poço semelhante à «área» de uma casa londrina, tendo apenas uma nesga de luz no alto. Eu caminhava ao longo das máquinas, tentando adivinhar para que serviam, e estava tão absorvido nelas que não notara a gradativa diminuição da luz. Foi a crescente apreensão de Weena que me chamou a atenção. Vi então que a galeria, na parte de baixo, mergulhava em espessas trevas. Hesitei, e ao olhar em torno observei que a poeira ali era menos abundante e sua superfície menos uniforme. Um pouco mais adiante, do lado da escuridão, pareceu-me ver impressas na poeira numerosas pegadas, pequenas e estreitas. Voltou-me a sensação que os Morlocks estavam por perto. Convenci-me de que perdia um tempo precioso no exame acadêmico daquelas máquinas. A tarde já ia avançada, e eu ainda não havia arranjado uma arma, um refúgio, nem meios de fazer fogo. Nesse momento, vindos do fundo escuro da galeria, ouvi as pisadas e os mesmos estranhos ruídos que os Morlocks haviam feito quando eu fugia deles no poço.
Peguei Weena pela mão. Depois, tomado de uma idéia súbita, deixei-a e virei-me para uma máquina da qual se projetava uma alavanca semelhante às de sinalização nas estações das estradas de ferro. Galguei a plataforma, agarrei a alavanca com as duas mãos e coloquei todo o meu peso para arrancá-la de lado. De repente, Weena, parada no meio da galeria, começou a choramingar. Eu tinha calculado com bastante precisão a capacidade de resistência da alavanca: após um minuto de esforço, ela se partiu. Fui ao encontro de Weena com uma maça na mão, mais do que suficiente, pensava eu, para esmigalhar quantos crânios de Morlocks se antepusessem no meu caminho. E já ansiava desde muito por matar alguns Morlocks. Vocês devem estar pensando: «Que desumanidade, desejar matar seus próprios descendentes!» Mas era impossível, lhes digo eu, descobrir qualquer laivo de humanidade naqueles bichos. Somente meu desejo de não abandonar Weena e a certeza de que, se começasse a satisfazer minha fúria exterminadora, a Máquina do Tempo iria pagar por isso, me impediram de descer até o fundo da galeria e massacrar os seres abjetos que ali nos tocaiavam.
E assim, sopesando a maça com uma das mãos e com a outra segurando Weena, saí dessa galeria e entrei noutra, ainda maior, e que ao primeiro relance me lembrou uma capela militar cheia de bandeiras esfarrapadas. Mas logo reconheci o que eram aqueles trapos carbonizados: restos de livros apodrecidos. Tinham desde muito caído em pedaços e não se via neles o menor vestígio de impressão. Mas, aqui e ali, encadernações deterioradas e fechos metálicos partidos falavam por si mesmos. Fosse eu um homem de letras e talvez me tivesse entregue a digressões morais sobre a inutilidade das ambições. Mas o que provocou o maior choque no meu espírito foi a constatação do enorme desperdício de trabalho que essa melancólica floresta de livros podres testemunhava. Devo confessar que nesse momento pensei sobretudo nas Philosophical Transactions (Centenária publicação da Royal Society, de Londres, reunindo principalmente estudos de física, matemática e biologia. - N. do T), e nas minhas próprias dezessete comunicações sobre ótica física.
Subimos depois por uma larga escadaria e fomos dar no que deveria ter sido uma galeria de Química Técnica. Ali eu esperava fazer algumas descobertas úteis. Salvo numa das extremidades, onde o teto havia desabado, estava bem conservada essa seção. Examinei ansiosamente todas as peças ainda intactas. E por fim, numa das montras realmente à prova de ar, encontrei uma caixa de fósforos. Experimentei-os com nervosismo. Estavam perfeitos. Nem sequer umedecidos.