Sem dizer uma palavra, aproximou-se penosamente da mesa e fez um gesto para alcançar a garrafa de vinho. O Redator-Chefe encheu uma taça de champanha e lhe ofereceu. Ele a esvaziou de um trago. A bebida pareceu fazer-lhe bem, porque ele circunvagou o olhar pela mesa e a sombra de seu costumeiro sorriso bailou-lhe no rosto.
— Mas por onde é que andou você, homem de Deus? — gritou de novo o Médico.
O Viajante do Tempo não pareceu tê-lo ouvido.
— Fiquem à vontade, não quero perturbá-los — falou, articulando com dificuldade as palavras. — Estou bem.
Deteve-se e estendeu a taça para que a enchessem de novo, e esvaziou-a de uma só vez.
— Isso faz bem — disse.
Seus olhos se tornaram mais brilhantes e um leve rubor subiu-lhe às faces. Relanceou os olhos sobre nós numa espécie de muda aprovação e em seguida se pôs a andar pela sala quente e confortável. Depois voltou a falar, ainda como se tivesse dificuldade cm encontrar as palavras.
— Vou lavar-me e mudar de roupa, depois descerei para lhes dar as explicações.. Deixem para mim um pouco desse carneiro. Estou quase a morrer de fome.
Deu-se conta da presença do Redator-Chefe, que era um conviva muito raro, e cumprimentou-o. O Redator-Chefe esboçou uma pergunta.
— Daqui a pouco eu lhe responderei — disse o Viajante do Tempo. — Sinto-me um pouco. . esquisito. Mas estarei bem num minuto.
Depositou a taça na mesa e encaminhou-se para a porta da escada. Notei mais uma vez que ele coxeava e que, ao andar, fazia um ruído abafado. Do lugar onde me encontrava pude ver os seus pés: estavam descalços, não tinham senão as meias rasgadas e sujas de sangue. A porta se fechou por trás dele. Por um instante pensei em segui-lo, mas logo me lembrei de que ele detestava ingerências na sua vida privada. Meu espírito se pôs a vaguear. «Estranho Comportamento de um Cientista Famoso» — ouvi a voz do Redator-Chefe, pronunciando as palavras como se ditasse um título de matéria em caixa alta. E isso fez voltar minha atenção para a brilhante mesa de jantar.
— Que brincadeira é esta? — perguntou o Jornalista. — Será que lhe deu na veneta bancar o vendedor ambulante? Não entendo.
O olhar do Psicólogo cruzou-se com o meu e no seu rosto li minha própria interpretação. Pensei no Viajante do Tempo a subir penosamente a escada com os pés descalços e machucados. Penso que ninguém mais tinha percebido que ele estava mancando.
O primeiro a se refazer totalmente da surpresa foi o Médico, que tocou a campainha para que trouxessem os pratos quentes (pois o dono da casa não tolerava a presença dos criados durante o jantar). Com um resmungo, o Redator-Chefe voltou ao garfo e à faca, e o Homem Silencioso imitou-o. Recomeçamos a jantar. Durante algum tempo a conversação limitou-se a uma troca de exclamações entremeadas de arquejos de satisfação gustativa, mas logo o Redator-Chefe mostrou que ardia de curiosidade.
— Acaso o nosso amigo incrementa sua modesta receita como lixeiro? Ou sofre transformações como Nabucodonosor? — perguntou.
— Estou certo de que se trata dessa história da Máquina do Tempo — disse eu, retomando o relato de nossa reunião anterior, do ponto onde o Psicólogo o deixara. Os novos convivas mostravam-se francamente incrédulos. O Redator-Chefe opunha objeções. Afinal, que viagem no Tempo era essa? Pode uma pessoa ficar coberta de poeira simplesmente ao dar voltas dentro de um paradoxo? E mal lhe ocorreu a idéia, enveredou pela caricatura. Não haveria escovas de roupa no Futuro? Também o Jornalista não acreditava de forma alguma e juntou-se ao Redator-Chefe na fácil tarefa de ridicularizar o caso. Ambos pertenciam à nova geração de jornalistas, rapazes alegres e irreverentes.
— «Nosso Correspondente Especial no Dia Depois de Amanhã» — estava o Jornalista dizendo ou, melhor, gritando, quando o Viajante do Tempo reapareceu. Envergava agora um traje de noite completo, e nada mais, salvo o olhar ainda esgazeado, lembrava o homem cujo aspecto, poucos momentos antes, tanto me assustara.
— Nossos amigos aqui — falou o Redator-Chefe, rindo — me disseram que você esteve viajando em meio da semana que vem!! Vai contar-nos o que descobriu? Quanto quer pelo artigo?
O Viajante do Tempo foi sentar-se, sem dizer uma palavra, no lugar que lhe era reservado. Sorria mansamente, à sua maneira habitual.
— Onde está o meu carneiro? Que prazer, poder enterrar de novo o garfo num pedaço de carne!
— História! — gritou o Redator-Chefe.
— Que se dane! — retrucou o Viajante do Tempo. — Agora quero comer alguma coisa. E não direi uma palavra enquanto não introduzir um pouco de peptona em minhas artérias. Obrigado. O sal, por favor.
— Uma palavra só — pedi. — Esteve viajando no Tempo?
— Sim — respondeu ele, com a boca cheia, sacudindo a cabeça.
— Pago um shilling por linha pela transcrição literal — disse o Redator-Chefe.
O Viajante do Tempo empurrou seu copo na direção do Homem Silencioso e tamborilou com a unha no cristal. O Homem Silencioso, que o olhava fixamente, despertou num sobressalto e serviu-lhe o vinho.
O resto do jantar transcorreu num ambiente de mal-estar geral. De minha parte, sucessivas perguntas me afloravam aos lábios e estou certo de que o mesmo acontecia com os demais. O Jornalista tentou aliviar a tensão contando anedotas. O Viajante do Tempo concentrava toda a sua atenção no jantar e parecia estar com uma fome insaciável. O Médico fumava um cigarro e observava o Viajante do Tempo com os olhos semicerrados. O Homem Silencioso parecia mais desajeitado do que nunca, e bebia champanha com a regularidade e determinação do puro nervosismo. Finalmente, o Viajante do Tempo empurrou o prato da sua frente e nos abarcou com o seu olhar.
— Acho que lhes devo um pedido de desculpas — falou.
— Mas a verdade é que eu estava simplesmente à beira da inanição. Passei por uns maus bocados. — Apanhou um charuto e cortou a ponta. — Mas venham para a sala de fumar. É uma história muito longa para ser contada por cima destes pratos.
E, tocando a campainha de passagem, levou-nos ao outro aposento.
— Você falou a Blanck, Dash e Chose sobre a máquina?
— perguntou, dirigindo-se a mim e recostando-se confortavelmente em sua poltrona. Esses eram os nomes dos três novos convidados.
— Mas tudo é um simples paradoxo! — argüiu o Redator-Chefe.
— Não estou em condições de discutir esta noite. Posso contar-lhes a história, mas discutir, não. Caso vocês queiram, conto-lhes o que me aconteceu, mas com a condição de não me interromperem. Preciso contar. Desesperadamente. Uma grande parte vai parecer mentira. Pouco importa! Tudo é pura verdade, nos menores detalhes. Estava eu no meu laboratório às quatro horas e desde então… vivi oito dias… dias como nenhum ser humano viveu antes! Estou morto de cansaço, mas não dormirei enquanto não tiver contado tudo a vocês. Depois irei repousar. Porém, nada de interrupções! Combinado?
— Combinado — disse o Redator-Chefe, e nós lhe fizemos coro.
Então o Viajante do Tempo começou a contar sua história, tal como buscarei reproduzir. De início ele afundou em sua poltrona e pôs-se a falar como um homem fatigado. Depois, foi-se animando.
Ao escrever isto, sinto agudamente como a pena e a tinta são insuficientes para exprimir a essência, e dou-me conta, mais ainda, de minhas próprias limitações. Creio que você, leitor, lê com bastante atenção. Mas não pode ver o rosto pálido, cheio de sinceridade, do Viajante do Tempo, iluminado pela pequena lâmpada. Nem ouvir as inflexões de sua voz. Você não pode imaginar como a expressão de seu rosto acompanhava as peripécias da narrativa! Quase todos dentre nós que o escutávamos estávamos na penumbra, pois as velas na sala de fumar não tinham sido acesas; só o rosto do Jornalista e as pernas do Homem Silencioso, dos joelhos para baixo, estavam no círculo de luz. A princípio trocávamos olhares uns com os outros. Mas não tardou que deixássemos de fazê-lo e, totalmente absorvidos, só fitássemos o rosto do Viajante do Tempo.