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Axel Seth fez um gesto difuso no ar.

"Já vi que você é um vivaço, mon cher Gonçalo!", exclamou. "Não se lhe pode esconder nada!" Suspirou. "Sabe, a história do TGV e do progresso que ele desencadeia é uma balela que inventámos para pôr o fabricante a vender comboios a toda a gente. Está a ver como é, o fabricante financiou o meu partido na última campanha e agora temos de o recompensar..."

"Nem me fale nisso, Axel! Em Portugal tenho sempre os financiadores do meu partido à perna, é um horror..."

"Pois é." O comissário europeu afinou a voz. "Estamos a vender comboios de alta velocidade para a Europa toda, já convencemos os Espanhóis e queria saber como vai ser com Portugal."

"Quanto custa uma brincadeira dessas?"

"O meu pessoal já fez as contas. Comboios, mais construção da linha e ainda a terceira ponte sobre o Tejo, é coisa aí para uns oito mil milhões de euros."

O primeiro-ministro esbugalhou os olhos.

"Oito mil milh... você está doido?"

"É o preço do progresso, mon cher."

"Nem pensar, Axel! Só se eu estivesse maluco de todo! Se gastarmos oito mil milhões de euros no projecto do TG V, fazemos um rombo nas contas públicas maior do que o buraco aberto pelo icebergue no Titanic. Não há 482

dinheiro para uma loucura dessas!"

"Nós financiamos, Gonçalo."

"Quanto?"

"Vinte por cento."

O primeiro-ministro esboçou nova careta e abanou a cabeça.

"E nós entramos com oitenta por cento? Não dá..."

"Meta ao barulho uma dessas parcerias público-privadas que vocês têm em abundância aí em Portugal e digam que, para além dos vinte por cento da União, outros quarenta por cento virão do cash flow gerado pela operação. Isso permitir-vos-á alegar que o estado português só paga uns quarenta por cento do projecto. Os papalvos irão engolir essa, fique descansado."

"Esse dinheiro não é recuperável."

"Claro que não, mas vocês não vão dizer isso a ninguém, pois não?

Basta encomendarem uns estudos de viabilidade financeira que digam o que vocês querem que eles digam, designadamente que o projecto pode ser rentável, metam no meio a expressão cash flow para ninguém entender patavina e a coisa fica resolvida."

"Mas, Axel, se nós avançarmos para isso vamos ter um problema sério de défice das contas públicas."

Axe! Seth respirou fundo, a impaciência a espreitar-lhe na voz.

"Oiça, Gonçalo, nós precisamos de arranjar negócio ao nosso fabricante de comboios de alta velocidade", disse num tom subitamente muito assertivo. "Andámos muito tempo a subsidiar a vossa economia com fundos de coesão, dinheiro dos nossos contribuintes que vocês entregaram às construtoras que vos financiavam os partidos, e agora queremos o retorno. Arranjem-se como quiserem, mas têm mesmo de nos comprar o TGV. Chegou a hora de os vossos contribuintes ajudarem quem financia o meu partido lá em França."

"Mas gastar oito mil milhões de euros num investimento que não é reprodutivo vai deixar-nos com a corda ao pescoço!..."

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"Não se preocupe com isso, mon cher! Agora estamos todos no euro e isso põe-vos ao abrigo das desconfianças do mercado. Além do mais, você estará no governo quando, daqui a alguns anos, chegar a hora de pagar?"

O primeiro-ministro português ajeitou a gravata. "Pois é, tem razão."

"Não se apoquente, mon cher! Quem vier a seguir que resolva o problema! E se os contribuintes tiverem de pagar ainda mais, azar deles!"

Gonçalo da Cunha riu-se.

"Contribuintes? O que é isso? Quando estamos no poder, Axel, todo o dinheiro ao nosso dispor pertence-nos a nós! A nós! Isso dos contribuintes é conversa para papalvos. O dinheiro é nosso e servimo-nos dele como muito bem entendermos!"

"É mesmo assim!", assentiu o francês com entusiasmo. "Se vier a faltar dinheiro, cortam-se salários, aumentam-se impostos, despedem-se pessoas, far-se-á o que tiver de ser feito! O importante é sermos uns para os outros, não é verdade?"

O seu interlocutor assentiu.

"Tem razão, tem razão." Considerou as vantagens da ideia. "Além do mais, isto é obra que impressiona o eleitorado. Se meter as parcerias público-privadas no projecto, a factura só virá daqui a alguns anos. Isso permitir-me-á dizer que o estado português paga pouquíssimo e outras tretas do género. Por outro lado, posso ainda alegar que o TGV traz progresso e dá emprego a muita gente..."

"Vai resultar! Você manda fazer, os palermas pagam e, a cereja em cima do bolo, ainda votam em si! É perfeito, mon cher Gonçalo! Parfait!"

As imagens no ecrã do computador portátil mostraram os dois homens a despedir-se, o primeiro-ministro a acompanhar o comissário europeu à porta e, uma vez só, a voltar para o sofá e a pegar no telemóvel. Digitou um número e aguardou que atendessem do outro lado.

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"Está? Comendador Pereira? Daqui Gonçalo da Cunha. Tirei um minutinho antes do conselho europeu, aqui em Bruxelas, para lhe dar uma palavrinha, meu caro. Como vai isso?" Fez uma pausa, a escutar o que dizia o seu interlocutor. "Pois muito bem, muito bem." Segunda pausa. "Ah é? Aquela auto-estrada que vos dei a construir lá na Beira Baixa vai bem? Olhe que vocês estão a arrecadar uma boa maquia dos cofres do estado, hem? Essa auto-estrada não vai ter tráfego nenhum, mandei-a fazer de propósito para vos ajudar..." Nova pausa. "Fique descansado, homem, eu trato disso. Como o tráfego será tão insignificante que não vos dará dinheiro, a gente mete no contrato que o estado paga para que vocês tenham lucro. Comigo, já sabe, a sua empresa nunca terá dificuldades." Fez uma pausa para escutar o seu interlocutor. "Qual terreno agrícola? O de Vila Nova de Mexilhões? Fale com o nosso autarca, ele é um bom tipo.

O gajo altera o plano director municipal e passa-lhe isso a terreno urbano, fique descansado. Terá é de desembolsar mais uns tustos, já sabe."

Afinou a voz. "Oiça, chegou-me agora às mãos um projectozinho que é bem capaz de render uns carcanhóis valentes, e é justamente por isso que lhe estou a ligar. Diga-me uma coisa, meu caro: o que percebe você de comboios de alta velocidade?" Outra pausa. "Pois, é uma coisa dessas.

Acontece que vamos avançar aqui com um projecto e... e quero que você faça parte do consórcio. É muita massa envolvida, meu caro amigo. Vai dar dinheiro para toda a gente." Nova pausa. "Não, é evidente que a alta velocidade não é rentável, meu caro comendador. Também estas auto-estradas não são rentáveis nem necessárias e isso não nos impediu de as fazer, pois não? Era preciso ajudar as construtoras amiguinhas e nós ajudámos, ou não ajudámos? Neste caso é o mesmo. A malta faz um contrato dos habituais, daqueles em que o estado paga para assegurar o lucro do consórcio encarregado do projecto. Será uma parceria público-

-privada segundo o esquema habitual, fique tranquilo." Ainda uma pausa.

"Isso, isso. Mas, oiça lá, quero um bom financiamento para o partido, 485

ouviu? Olhe que estou a dar-lhe muito dinheiro a ganhar." Mais outra pausa. "Está bem, depois falamos. Quando tivermos definido o itinerário que o TGV vai ter, dar-lhe-ei adiantadamente a informação para que possa comprar os terrenos a bom preço e ganhar uma bela maquia com as expropriações."