Respeitou uma nova pausa e, esboçando de repente uma careta, bateu com a palma da mão na testa. "Ah, pois, tem razão! Você já conhece bem esse esquema, quando foi do traçado das Scut, já nem me lembrava..." Afinou a voz. "Não se esqueça que esta história dos comboios vale milhares de milhões de eur... uh... quilómetros. Por isso, não aceito menos de umas dezenas de milhões de eur... quer dizer, de quilómetros para o partido, está a ver? Tenho eleições à porta e..." Pausa. "Está bem, está bem. Os homens da mala depois passam por aí para receber o dinheiro. A chatice é a comissão que eles levam, hem? Mas, enfim, tem de ser. É o preço para apagar o rasto dos... dos quilómetros." Suspirou. "Depois falamos melhor, meu caro comendador, ao telefone convém ser prudente, não é verdade? Além disso, vai agora começar o conselho europeu e não posso chegar atrasado, senão a gorda ainda me passa uma descasca em alemão." Riu-se.
"Cumprimentos à malta aí da sua construtora. Especialmente ao tesoureiro, ouviu?" Nova risada. "Bom rapaz, esse Teodoro! Uma maravilha a passar cheques, hem?" Ainda outra gargalhada. "Um abraço, um abraço..."
O chefe do governo português desligou o telemóvel e a imagem foi a negro, sinal de que a sequência de gravação estava concluída.
Depois de carregar no pause, Tomás voltou-se para os procuradores do Tribunal Penal Internacional. "São três conversas muitos instrutivas, não vos parece?"
Agnès Chalnot e Cano dei Ponte ainda estavam estarrecidos com o que haviam visto e ouvido.
"Muito", murmurou a procuradora-geral, o assombro a empalidecer-lhe a face. "Muito mesmo."
"Não é que não suspeitássemos que as grandes decisões se tomassem assim, mas uma coisa é imaginarmos e outra é vermos e 486
ouvirmos", considerou o historiador. "Há várias coisas essenciais que estas conversas nos mostram. A primeira é que existe um problema sério nas nossas democracias no que diz respeito ao financiamento dos partidos políticos. Quem dá dinheiro aos partidos não o faz por idealismo, mas para colher vantagens. E o que é grave é que as colhe de facto. O sistema está montado de tal maneira que, a troco de financiamentos para serem eleitos, os políticos tomam importantes decisões em função dos interesses dos seus financiadores e em grave prejuízo dos interesses dos seus cidadãos. Fazem-se obras que não são necessárias só para dar dinheiro aos financiadores. Uma inspecção do Tribunal de Contas permitiu concluir que quase setenta por cento das despesas de consultoria efectuadas num ano em Portugal eram por recurso a ajuste directo. Só em menos de três por cento dos casos houve consulta a mais de um prestador de serviços.
"Como é possível?", questionou-se Agnès Chalnot. "Portugal não é um país da União Europeia?"
"Oiça, este problema existe em Portugal, existe no resto da Europa, existe na América e existe em qualquer país onde haja democracia. Calcula-se que cada congressista americano, por exemplo, passe entre trinta e setenta por cento do seu tempo a angariar fundos para as suas campanhas eleitorais. Os políticos são muito mais sensíveis às necessidades dos financiadores do que do país e chegam a cooperar com os seus rivais, como aconteceu nesta negociata dos submarinos, para garantir o acesso tranquilo ao dinheiro. O actual sistema de financiamento partidário é altamente corruptor e, se não for seriamente reformado, não vamos a lado nenhum."
"É um facto", assentiu a procuradora-geral. "Já dizia o Garganta Funda do Watergate: sigam o dinheiro. Quem quiser identificar a fonte de todos os males só tem de seguir o rasto dos financiamentos."
Tomás apontou para o ecrã onde haviam visto as conversas.
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"A segunda coisa que estas conversas nos mostram é que a corrupção em Portugal é um problema sério. Repararam naquela conversa sobre os terrenos agrícolas passarem para urbanos? Isso é um grande esquema de corrupção em Portugal. Os tubarões compram a um agricultor pobre um terreno agrícola que custa vinte mil euros, pagam por baixo da mesa para que as câmaras alterem os planos directores municipais e transformem esses terrenos em urbanos, e as propriedades passam assim a custar duzentos mil euros."
"Grande golpada..."
"Então não é? Este esquema tem diversas variantes e ouvimos uma delas na conversa entre o primeiro-ministro português e o construtor civil. O governante revela ao seu financiador o itinerário do TGV antes de essa informação ser pública, o financiador compra os terrenos agrícolas que se encontram no trajecto previsto e corrompe os autarcas para estes passarem esses terrenos a urbanos. Como por lei as expropriações dos terrenos urbanos são muito mais caras do que as dos terrenos agrícolas, os financiadores ganham uma fortuna quando o estado usa o dinheiro dos contribuintes para expropriar os terrenos agora urbanos onde vai circular o TGV. Este esquema, que envolveu governantes e financiadores, foi muito usado quando da construção das estradas, incluindo as Scut. Só à custa das expropriações de terrenos passados apressadamente a urbanos, a construção de estradas em Portugal deve ter custado o dobro do seu valor real."
Os magistrados entreolharam-se, estupefactos.
"Isso é... incrível."
"Outra variante deste negócio serviu para sacar dinheiro aos bancos em quantidades industriais. Os construtores compravam um terreno agrícola baratucho e, corrompendo os autarcas, passavam-no a urbano e obtinham licenciamento para um projecto. Depois pediam aos bancos que lhes financiassem trinta por cento da construção e 488
ofereciam o terreno como garantia. Como o crédito estava barato, os bancos davam o dinheiro e os construtores, em vez de fazerem a obra, ficavam com a massa. Quando os construtores deixavam de pagar o que deviam, o banco ia buscar o terreno que ficara de garantia e descobria que ele afinal estava algures no meio de um campo e não valia nada.
Só lá tinha umas hortas."
"Pois, mas isso é um negócio que não envolve dinheiros públicos, pelo que não está no âmbito da nossa investigaç..."
"Está enganada", corrigiu Tomás, interrompendo a procuradora do TPI. "Metade da dívida privada deve-se às famílias que compraram casa e não a conseguem pagar, não é verdade? Mas e a outra metade da dívida privada que deixou Portugal com a corda no pescoço? São dívidas criadas por estes esquemas. Os bancos estão à beira da falência porque emprestaram dinheiro para obras em terrenos que afinal não valem nada. Como os bancos se encontram aflitos, quem os veio salvar?"
A pergunta ficou por um momento a pairar no ar até que o olhar de Marilú se acendeu com a resposta.
"O estado."
"E com que dinheiro?"
A procuradora suspirou, vendo a evidência.
"O dinheiro dos contribuintes, claro."
O historiador sorriu.
"Está a ver como os dinheiros públicos foram arrastados para este esquema? Os governos estão a cortar salários e pensões e a aumentar os impostos também para arranjar dinheiro para meter nos bancos que emprestaram milhares de milhões de euros e ficaram nas mãos com terrenos que afinal não valem nada."
"Pois, estou a ver."
"Outro pormenor interessante desta última conversa registada no DVD é a referência aos homens da mala. Trata-se dos angariadores do 489