Várias mãos agarraram o alemão e este contorceu-se com violência, tentando sem êxito libertar-se dos tentáculos que lhe começavam a tolher os movimentos.
"Larguem-me, já disse!" gritou em desespero. "Deixem-me em paz!
Não fiz nada!"
O grupo acercou-se ainda mais da sua vítima e um braço soltou-se daquela mole humana, esmurrando-o no estômago. O alemão dobrou-
-se com um urro de dor e logo a seguir levou uma bofetada e um empurrão. Surgiu um primeiro pontapé e depois outro e outro ainda, até que o recluso caiu no chão e se dobrou como um ouriço, num esforço desesperado para se proteger das agressões que choviam já de todas as partes.
A observar a cena do outro lado da cela, junto à porta, Tomás avaliou a situação com horror crescente. Primeiro decidira não intervir; já bastava o que se passara na manifestação e não estava para voluntarismos que o metessem em mais sarilhos. Quando as coisas se começaram a degradar na cela, no entanto, ponderou chamar um guarda, mas percebeu que ele levaria muito tempo a aparecer e, no ponto em que estavam, só uma intervenção rápida poderia salvar o alemão.
Suspirou, rendido à inevitabilidade; não havia alternativa, teria mais uma vez de se enfiar num vespeiro.
"Temos de parar isto", acabou por dizer, dando um passo em frente. "Se não fizermos nada, os gajos dão cabo dele."
O professor Markopoulou agarrou-o pelo cotovelo, tentando 50
travá-lo.
"Está louco?", perguntou. "Eles são oito e nós somos só dois.
Se nos metemos nisso, os tipos também acabam connosco! Esteja quieto, que diabo!"
Com uma sacudidela violenta do braço, o português libertou o cotovelo e avançou para o amontoado de homens; a decisão estava tomada, fossem quais fossem as consequências. Esgueirou-se entre dois agressores e penetrou na massa de detidos, num esforço para se interpor entre eles e a sua vítima.
"Parem com isso!", ordenou com voz de comando. "Stop! Parem com isso!"
A intromissão inesperada de Tomás suspendeu as agressões. Os anarquistas desviaram para ele os olhos arregalados, apanhados de surpresa pela intervenção. Um deles, o que aparentava dominar os restantes, atirou-lhe um olhar inquisitivo.
"Quem és tu? Outro nazi?"
"Sou português", identificou-se num registo tranquilo, como se os tentasse amansar com a mansidão que imprimiu à voz. "Vá, acabem lá com isso."
"Acabar o quê? Junta-te mas é a nós. Ou pensas que lá por seres português os Alemães não te estão a fazer a folha? Os Portugueses andam a sofrer tanto como os Gregos!"
"Talvez, mas isto não é maneira de tratar ninguém", retorquiu o historiador. "Além disso, este homem não vos fez nada. Não há razão para o maltratarem."
"Os nazis estão a dar-nos cabo da vida."
"Mesmo que seja verdade, este tipo não tem nada a ver com as decisões tomadas pelos governantes do país dele."
"Achas que não?", rugiu o anarquista. "Quem foi que votou naquele governo imperialista? Quem anda a dizer que os Gregos são uns preguiçosos e incompetentes e que só têm o que merecem?
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Quem anda a dar as ordens ao nosso governo fantoche para despedir trabalhadores e aumentar impostos e cortar salários e pensões? Os Alemães, pois então! Os capitalistas criaram a crise, não criaram?
Então porque temos de ser nós, o povo, a pagar a factura? Eles que a paguem! Comeram-nos a carne, não comeram? Agora que nos roam os ossos! Vamos deixá-los abusar mais de nós?" Ergueu o punho com violência. "Nem pensar!" Girou a cabeça, contemplando os restantes membros do grupo, e agitou o punho no ar para pontuar cada frase.
"Os ricos que paguem a crise! A luta continua! Liberdade ou morte!"
Os companheiros ecoaram as palavras de ordem num coro vagamente rouco, feito de fúria e sede de justiça, os slogans entoados com crescente fervor e intensidade, as faces rubras, os olhares esgazeados, um desejo incontrolável de vingança a ferver-lhes no sangue.
O homem que aparentava chefiar o grupo berrou uma ordem em grego e os companheiros recomeçaram a pontapear o alemão tombado. Vendo que as coisas se descontrolavam de novo, Tomás conseguiu interpor o seu corpo entre os agressores e a vítima e ergueu os braços, tentando mais uma vez parar o assalto.
"Stop!", berrou. "Stop!"
Os anarquistas ignoraram-no e continuaram a tentar atingir o seu alvo. Como o historiador se interpusera, porém, e constatando que isso dificultava o ataque, alguns dos detidos alteraram o objecto da sua fúria e voltaram-se para o português. Um primeiro murro atingiu Tomás no ombro, um segundo na cintura e um pontapé acertou-lhe na coxa. Foi apenas a introdução ao que aí vinha. Seguindo o exemplo dos companheiros, os restantes reclusos viraram a sua cólera contra o historiador e lançaram sobre ele uma saraivada de murros e pontapés. Tomás podia ter ripostado, mas sabia que não podia vencer os agressores e que isso apenas os atiçaria ainda mais, pelo que optou pela defesa passiva.
Desequilibrado pela violência do ataque, deixou-se cair sobre o 52
alemão e, já por terra, encolheu-se também, tentando proteger sobretudo a cabeça e o ventre. Esperava que a sua atitude acabasse por desencorajá-los. Não foi, contudo, o que aconteceu. Embalados por um chorrilho de palavras de ordem bradadas com zelo implacável, os anarquistas descarregaram sobre ele toda a sua fúria e os golpes, alguns dos quais desferidos com a biqueira de botas, começaram a tornar-se demasiado dolorosos.
Foi então que Tomás perdeu a noção de espaço e até de tempo.
A realidade tornou-se difusa e o mundo começou a rodopiar em torno dele; era como se estivesse embriagado. A certa altura sentiu-se tão embrutecido que deixou até de ouvir a gritaria animalesca em seu redor e de sentir os golpes desferidos sobre o seu corpo com intensidade selvática, como se a própria dor o tivesse anestesiado e a sua alma se tivesse transferido para uma outra dimensão, feita de torpor e indiferença.
"Professor?..."
A voz parecia vir do fundo de um túnel, longínqua e envolvida num estranho eco, com a ressonância e a irrealidade próprias das coisas imaginadas a meio de um delírio febril, decerto um efeito do sonho em que a sua mente mergulhara, mera fantasia que o sono profundo debitara. Decidiu ignorá-la, não passava de um débil murmúrio que se perdia no labirinto da imaterialidade, coisa menor e tão irrelevante que não merecia a sua atenção.
"Professor?..."
Desta feita a voz soou bem mais perto, quase como se fosse soprada a dois palmos de distância; parecia que irrompera no sonho e o trazia à realidade. Foi uma surpresa e levou-o a considerar a possibilidade de reagir. O que tinha a perder?
"Há?"
Ouviu-se um suspiro.
"Louvado seja Deus!", devolveu a voz, como se se dirigisse a 53
alguém. "Está a recuperar os sentidos!"
Sentindo o corpo dorido e as pálpebras incrivelmente pesadas, Tomás concentrou toda a sua vontade nos olhos e conseguiu enfim abri-los. Um ponto amarelado de luz rompeu a imagem desfocada que se formou no seu campo de visão. Apercebeu-se de uma sombra difusa a cortar o ponto de luz e voltou a achar que estava a sonhar, pelo que cerrou de novo as pálpebras.
"Professor! Acorde!"