financiamento partidário, que cobram comissões de quarenta por cento. O dinheiro que eles angariam é depois despejado aqui e ali, de tal modo que nos cofres dos partidos acabam por só entrar quinze por cento."
"Mon Dieu!", exclamou a procuradora-geral, abanando a cabeça.
"Só negociatas!"
"É verdade. Mas a verdadeira negociata é a dos corruptores, claro. A conversa entre o primeiro-ministro e o dono da construtora é, a todos os títulos, ilustrativa. Graças ao dinheiro que dão aos partidos e aos decisores corrompidos, os grandes tubarões conseguem verdadeiros negócios mirabolantes. As PPP são exemplos de negociatas suspeitas, em que o risco foi transferido do privado para o contribuinte, o qual assegura ao privado rentabilidades de quinze por cento ao ano. Ou os governantes que decidiram isso são totalmente parvos, coisa de que tenho as maiores dúvidas, ou então fizeram-no porque havia interesses ocultos em jogo. Não há provas de nada, claro, mas não consigo imaginar outra explicação para decisões tão ruinosas. Reparem que, quando a legislação das PPP foi aprovada, seis deputados da comissão parlamentar de obras públicas eram administradores de empresas de construção envolvidas nestas parcerias..."
Agnès Chalnot sorriu.
"Deve ter sido coincidência..."
"Pois deve", devolveu Tomás. "A terceira coisa que estas conversas mostram é que os países do centro, como a França e a Alemanha, têm também uma importante fatia de responsabilidade na crise da dívida dos países da periferia. Quando a crise começou, os Alemães acusaram a periferia de gastar à tripa-forra, e tinham razão. O que eles não disseram é que eles próprios, Alemães e Franceses, encorajaram os periféricos a endividar-se para além do que podiam. A Alemanha e a França usaram a periferia para financiar indirectamente as suas 490
próprias empresas, pressionando os países periféricos, em particular a Grécia e Portugal, para avançarem com projectos ruinosos que evidentemente não conseguiriam pagar. Ou seja, toda a retórica moral que agora apresentam, retórica que é aliás correctíssima, está impregnada da mais pura das hipocrisias. Os governantes dos países periféricos europeus merecem sentar-se no banco dos réus no processo de crimes contra a humanidade por decisões danosas que tomaram e que conduziram a esta crise, mas os governantes dos países do centro também. É importante lembrar que Portugal, sendo o país mais antigo da Europa, faliu menos vezes que a Alemanha e a França, por exemplo. Portanto, a falência não é algo que esteja necessariamente nos genes portugueses, como andam a insinuar."
Os dois procuradores do Tribunal Penal Internacional cruzaram o olhar; ambos tinham plena consciência de que não os aguardava tarefa fácil. Como iriam eles sentar no banco dos réus, além dos sucessivos governantes da Grécia, de Portugal e de Espanha, os presidentes de França e os chanceleres da Alemanha?
"Tudo isto é muito interessante", disse Agnès Chalnot. "Mas, com o que temos, receio que o processo não tenha pernas para andar."
A conclusão surpreendeu o historiador português. "Não? Porquê?
"Porque não conhecemos a origem do dinheiro com que os países periféricos financiaram estes projectos", indicou ela. "No fim de contas, os financiamentos comunitários só cobrem uma parte das despesas, não é verdade? Sem termos uma coisa dessas apurada, não é possível processo nenhum..."
Tomás inclinou a cabeça.
"Acha que os dois técnicos franceses não gravaram nada sobre isso?", perguntou em tom de desafio. Desviou o olhar para o computador onde o DVD estava inserido. "Pois engana-se..."
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LXXIII
O ambiente na sala dos Uffizi tornara-se denso, quase como se um nevoeiro pairasse sobre todo o espaço. O dedo de Tomás aproximou-se do botão de play do computador portátil. Antes de carregar, porém, o historiador encarou a procuradora-geral do TPI.
"O próximo segmento gravado pelos dois franceses lida justamente com a questão de determinar a forma como os bancos dos países centrais financiavam o despesismo nos países periféricos", disse. "O que vamos ver a seguir é uma conversa telefónica entre um banqueiro alemão e um banqueiro americano. O alemão tinha tido uma reunião com o ministro espanhol das Obras Públicas e ficou sozinho no gabinete, sem saber que estava a ser gravado. O telefone fixo que ele utilizou também se encontrava sob escuta, o que nos permite ouvir o que o seu interlocutor dizia em Nova Iorque."
Carregou no play e a imagem recomeçou a rolar. Mostrava um homem gordo e engravatado sentado a uma mesa, a fazer uma chamada a partir de uni telefone fixo.
"Hallo, John? Aqui Mathias Glock, do Münchner Eurobank. Tudo bem?"
"Hi, Mattie! Como vai isso, old pai?"
"Wunderbar. Ouve, John, tive agora uma reunião com o ministro espanhol das Obras Públicas e ele pediu-me dez mil milhões de euros para financiar mais uma linha de alta velocidade. Será que me podes disponibilizar esse dinheiro?"
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"A que juro, Mattie?"
"O do costume, claro."
"O juro do costume é muito baixo, Mattie! Já te enviei cinco mil milhões para umas auto-estradas em Portugal, mais sete mil milhões para o governo grego distribuir subsídios às suas clientelas e agora queres outros dez mil milhões para os Espanhóis? Olha que já mandámos trinta mil milhões para financiar a construção civil em Espanha e outros quinze mil milhões para o imobiliário na Irlanda! Essa gente está a estourar dinheiro que se farta! Será que eles depois nos pagam?"
"Ach, John, que pergunta! Não vês que estamos todos no euro? Agora é tudo a mesma coisa, mein Freund! Emprestar a um espanhol ou a um português é o mesmo que a um alemão!"
"Tens a certeza? Olha que a dívida desse pessoal já começa a pesar..."
"Confiança total, John."
"Esses países não têm medo de ficar sobre endividados?"
"Qual quê! Olha, o governador do Banco de Portugal, por exemplo, já disse em público que, uma vez que o seu país está no euro, a questão do sobre endividamento não se coloca. E em privado encorajou os banqueiros portugueses a endividarem-se à vontade. De modo que só temos de aproveitar os juros baixos e usar o dinheiro. Emprestar aos países da zona euro, quaisquer que eles sejam, é absolutamente seguro! Se houver algum problema, as economias mais fortes servem de garantia implícita das dívidas das economias mais débeis."
O americano hesitou.
"Yeah, tens razão", acabou por dizer. "Okay buddy, manda-me então os papéis e eu trato disso. Vamos ganhar boa massa em comissões, hem?"
"Jawohl, John. Vou falar com os Espanhóis para que eles formalizem o pedido. É ainda possível que haja outra encomenda dos Portugueses. Parece que agora também querem construir um aeroporto."
"Wow, Mattie! A Europa parece um estaleiro! É só obras, é só obras! E
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nós a facturar!"
A imagem foi a negro e Tomás carregou no stop.
"Esta conversa é muito interessante porque mostra como o esquema estava montado", sublinhou o historiador. "O dinheiro barato gerado pelas taxas de juro muito baixas era enviado para os bancos dos países centrais na Europa. Apesar de o Tratado de Maastricht ter uma cláusula de no-bailout, na qual é explicitado que a zona euro não se responsabiliza pela dívida individual de cada um dos seus países-membros nem a pagará, os bancos europeus e até os bancos centrais, COO o português, convenceram-se de que tal cláusula nunca seria accionada e alimentaram a ficção de que um empréstimo à Grécia era tão seguro como um empréstimo à Alemanha. Os Americanos compraram essa ficção e enviaram dinheiro a juro baixo aos bancos alemães, franceses, austríacos, belgas e holandeses, que o redistribuíram pelos países periféricos, onde foi aplicado em maus investimentos no sector não transaccionável e no alargamento desmesurado do estado social. O euro tornou-se assim um esquema gigantesco de reciclagem de dinheiro do centro da Europa para a periferia, tornando metade do continente credora e a outra metade especuladora, com os bancos a actuarem como intermediários que arrecadaram enormes comissões e aceitaram como garantia propriedades sobrevalorizadas pela bolha do imobiliário. Quando a bolha americana rebentou e o preço dos imóveis caiu, todo este edifício de cartas foi abaixo. Os países do centro, que canalizaram o dinheiro para a periferia e lhe impingiram negócios para financiar indirectamente as suas próprias empresas, viram a maré mudar e o que fizeram eles?