Uma gargalhada soou do outro lado da linha.
"Primeiro-ministro que fala assim não é gago!"
A imagem voltou a dissolver-se em negro. Tomás parou a gravação e virou-se mais uma vez para os procuradores.
"Penso que o que ouvimos aqui é elucidativo sobre o estado de impunidade dos políticos", observou. "É significativo que num país como Portugal, por exemplo, haja corrupção mas não haja corruptos. Nenhum político foi alguma vez condenado por corrupção, são todos impolutos.
Todas as acusações terminam sempre em nada, uma vez que a lei está concebida de tal forma que se torna muito difícil conseguir a condenação de quem quer que seja. Um autarca de Lisboa que, com a ajuda da polícia, gravou uma conversa com o dono de uma empresa que tentava aliciá-lo acabou condenado por difamação e gravação ilícita, e o corruptor não passou nem um minuto na cadeia. A corrupção é um crime de quem gere dinheiros públicos, e os políticos não têm o menor interesse em aprovar uma lei que seja eficiente no combate a um tipo de criminalidade que os envolve directamente. As pessoas que denunciam a corrupção são as únicas penalizadas. Uma secretária de uma junta de freguesia que afirmou em tribunal ter ouvido falar nuns pagamentos feitos a um ministro para aprovar um grande projecto de licenciamento viu-se, no dia seguinte, despedida da junta onde trabalhava."
"Não há protecção para quem denuncie corrupção?"
"Nenhuma. Os legisladores não estão obviamente interessados em punir a corrupção a sério e em proteger quem a denuncia porque isso significaria que se punham a si mesmos em causa. Legislam em causa própria. Vocês não notaram, na gravação desta última conversa, aquela alusão ao escritório de advogados de um determinado deputado, o tal Manei? Trata-se de uma referência a um dos esquemas com que se branqueia a corrupção fingindo-se combatê-la. O que se passa é que os governantes entregam a elaboração das leis a grandes escritórios de advogados, que as redigem de uma forma muito confusa."
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"Então não devem ser grandes juristas", observou Agnès Chalnot. "Um bom jurista redige leis simples e claras."
"Não está a perceber", disse Tomás. "As leis que eles redigem são deliberadamente confusas!"
A francesa fez uma careta de incompreensão. "Deliberadamente?"
"Claro. Quanto mais confusa e contraditória é a lei, mais alçapões contém. Os advogados contratados pelos partidos e pelos governos lavram leis cheias de regras sempre numa linguagem ininteligível, carregadas de excepções formatadas para as conveniências. Além do mais, e como esses textos são propositadamente confusos, os escritórios de advogados ganham ainda dinheiro a elaborar pareceres sobre as leis que eles próprios fizeram. É uma gatunagem incrível. Andam a cortar salários e pensões às pessoas para pagar os prejuízos provocados por toda esta corrupção."
A procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional suspirou.
"Pois é", anuiu ela. "Juntamente com a questão do financiamento partidário, esse problema é de facto central."
"As duas questões estão relacionadas uma com a outra", reconheceu Tomás. "Mas a questão mais central de todas é a suscitada pela próxima gravação, por sinal a última. Trata-se de Uma interessante conversa entre o primeiro-ministro português, que se encontrava em Bruxelas para outro conselho europeu, e o ministro das Finanças, que ligou de Lisboa. Ora vejam."
O historiador carregou no play e a imagem do gabinete da delegação portuguesa voltou a materializar-se no ecrã do computador portátil, mostrando de novo o chefe do governo sentado à secretária e agarrado ao telefone fixo.
"Então, Gonçalo?", perguntou a voz de Lisboa. "Preparado para mais uma cimeira?"
"Ufa, isto é uma seca das antigas! Vou ter de pedinchar mais umas ajudinhas..." Mudou o tom de voz. "Olha lá, conseguiste aquele 499
investimento dos Americanos em Setúbal?"
"Nem me fales nisso!", devolveu o ministro das Finanças. "Fui lá a Seattle com a conversa de que investir em Portugal é que é bom e coisa e tal, mas os tipos responderam logo que não. Parece que andaram a informar-se e descobriram que, para um trabalhador relativamente bem pago, dois terços do custo para a empresa vão para impostos. Perceberam que temos das maiores cargas fiscais do inundo e disseram-me que não estão para vir aqui esbanjar dinheiro. Além do mais, foram avisados de que não se consegue despedir ninguém, que a burocracia é infernal e que os processos em tribunal levam quinze a vinte anos a ser resolvidos. Decidiram investir na Polónia..."
"Eh pá! Que chato! Não lhes explicaste que temos bom sol, que a comida é óptima, que as pessoas são muito simpátic..."
"Os investidores não querem saber disso para nada, Gonçalo! Sabes o que te digo? Temos de mudar estas leis, porque senão não vamos a..."
"Nem penses numa coisa dessas!", cortou prontamente o primeiro-ministro, nada interessado em alimentar aquela conversa. "Só se quiséssemos perder as eleições! Além do mais, os sindicatos caíam-nos todos em cima!"
"Isso é conversa! Achas mesmo que os sindicatos iam opor-se a medidas que permitiriam criar emprego?" O chefe do governo soltou uma gargalhada.
"Deves estar a gozar! Os nossos sindicatos exigem a criação de emprego e ao mesmo tempo querem manter as actuais leis, que dificultam a criação de emprego. Não percebem, ou fingem não perceber, que com a globalização as grandes empresas têm alternativas de investimento e que com as nossas leis ninguém abre negócio em Portugal." Suspirou. "Enfim, não te rales. Quando isto der para o torto alguém que resolva o problema! Temos é de ir tratar da nossa vidinha, não é verdade?"
O ministro das Finanças não insistiu, tão peremptório fora o seu 500
chefe. Em vez disso, afinou a garganta e baixou a voz.
"Bem, liguei-te por causa de outra coisa", disse de mansinho. "Tenho aqui um problema sério e preciso de falar contigo com urgência."
"Que se passa, Augusto? Não me digas que os cabrões dos jornais voltaram a..."
"Não é nada disso", cortou o ministro. "Recebi aqui uma informação da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos que... enfim, isto é muito complicado, muito complicado mesmo."
"Então? Que aconteceu?"
"Parece que há uma quebra brutal das receitas." "Brutal como?"
"O IRS, o IRC, o IVA.., as receitas do fisco tombaram em flecha."
"Estás a brincar!..."
"Quem me dera! Esta crise na América parece estar a atingir a economia de uma maneira que não prevíamos. As vendas caíram, as empresas estão a facturar menos e muitas até começaram a fechar, há por isso mais malta a ficar sem trabalho e... e anda tudo a pagar menos impostos. As receitas levaram um trambolhão do catano!"
Fez-se um silêncio súbito na linha, com o primeiro-ministro a ponderar o que acabara de escutar.
"Olha lá, isso já transpirou?"
"Não, não. Nada. Esta informação é interna."
O primeiro-ministro suspirou, aparentemente aliviado.
"Ufa, ainda bem!", bufou. "Mantém a coisa em segredo, ouviste?
Vêm aí eleições e não quero cá mais chatices. A oposição é bem capaz de pegar nisso e os jornais..."
"Mas, ó Gonçalo, não estás a ver bem o problema", insistiu o ministro das Finanças. "Se temos menos receita, precisamos de baixar a despesa ou aumentar os impostos."