Выбрать главу

"Estás doido?", exaltou-se o chefe do governo, irritado com a sugestão. "Com as eleições à porta?"

"Se não fizermos nada, o défice dispara."

501

"A malta controla a coisa."

"Qual controla a coisa?! Se entra menos dinheiro, não podemos gastar tanto. Isto é simples aritmética. Temos de cortar na despesa ou aumentar a receita. O problema é que a receita está a levar um tombo dos antigos."

"Não, não", exclamou o primeiro-ministro. "Nem pensar!" "Então como fazemos?"

"Contraímos mais empréstimos para tapar esse buraco." "Mas assim a dívida pública vai disparar."

"Estou-me a borrifar para a porra da dívida pública!", desabafou o chefe do governo, elevando de novo a voz. "Vêm aí eleições e é preciso distribuir umas benesses pela populaça. Por isso vamos até aumentar os salários e baixar os impostos."

O ministro das Finanças quase gritou do outro lado da linha.

"O quê?"

"É como te digo: vamos aumentar a função pública. Estava a pensar em.., sei lá, três por cento."

"Um aumento de três por cento nos salários?!"

"Achas de mais?" Hesitou. "Está bem, ficamos pelos dois vírgula nove por cento." Nova hesitação. "Mas se os aumentos não chegam aos três por cento temos de dar umas alvíssaras com os impostos. Que tal baixar o IVA um ponto?" "Mas... mas..."

"As eleições estão à porta, meu caro amigo!", insistiu o primeiro-ministro.

"Queres perdê-las ou quê?"

"Ó Gonçalo, isso é uma loucura! Não há dinheiro para aguentar uma coisa dessas."

"Tem calma. Ouve, vou explicar-te como vamos fazer a golpada.

Aumentamos a função pública e baixamos o IVA, não é? Dizemos que isto tem a ver com a melhoria da economia e com a nossa gestão rigorosa dos dinheiros públicos e coisa e tal. Fazemos um vistaço do camano. Vêm as eleições, a malta ganha com uma perna às costas e, logo a 502

seguir, pimba!, dizemos que afinal a situação internacional piorou, o que aliás não é mentira nenhuma, e cortamos regalias e deduções fiscais, de modo a reduzir os salários de uma forma invisível, e aumentamos outra vez o IVA e, se necessário, o IRS. Limpinho."

O tom de voz em Lisboa era de desaprovação. "Não me parece nada bem."

"A escolha é simples: queres perder ou ganhar as eleições?"

"Não é isso. A questão é que benesses desse calibre são ruinosas.

Além do mais, ninguém vai acreditar nessa conversa..."

"Claro que vai", retorquiu o chefe do governo. "O De Gaulle disse uma vez que, como nenhum político acredita no que diz, fica sempre surpreendido quando vê que os outros acreditam nele. É mesmo assim, meu caro! As vezes digo com ar sério as maiores tretas que possas imaginar.., e o pessoal papa tudo. Eu próprio às vezes fico espantado! De modo que podes ficar tranquilo. Já ando nisto há muitos anos e sei bem como é..."

"Mas achas que o pessoal não vai notar que estas medidas surgem em contra ciclo só por causa das eleições?"

"Mesmo que notem, qual é o problema? Dizes que os aumentos salariais em ano de eleições são 'mera coincidência' e o pessoal o que faz?

Alguém vai opor-se ao aumento dos seus salários?" Riu-se. "Vai por mim, irá correr tudo bem..."

Sentiu-se uma hesitação no outro lado da linha.

"Pois, és capaz de ter razão."

"Claro que tenho razão!", exclamou o primeiro-ministro. "Mas é essencial que essa informação da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos permaneça confidencial, ouviste? Nem um pio sobre isso!"

"Está bem, vou ficar caladinho", prometeu o ministro das Finanças.

"Mas a carta existe, Gonçalo. O que vamos nós dizer se alguém a descobrir depois das eleições?"

"Dizemos que ela não nos chegou, que não a lemos, que não soubemos de nada... uma tanga dessas."

503

"Mas há alguém que acredite nisso?", questionou a voz de Lisboa, ainda carregada de cepticismo. "Isto são as receitas do estado, Gonçalo! Como é possível que uma informação desta importância não chegasse até nós? Dizer que não fomos informados de que as receitas sofreram um colapso é o mesmo que o imperador do Japão dizer que não foi informado de que caíram bombas atómicas no seu país. Não é possível! Ninguém vai comprar uma desculpa tão esfarrapada!"

"Compram, compram!", retorquiu o chefe do governo, seguro de si. "Se a malta negar com convicção, as pessoas acreditam. Sem espinhas!

E mesmo que algumas não acreditem, nunca ninguém poderá provar coisa nenhuma."

A imagem foi a negro e Tomás carregou no stop e voltou-se para os procuradores.

"Esta derradeira conversa ilustra o problema central que conduziu o planeta à crise", observou. "O facto de os políticos porem as suas eleições e reeleições à frente dos interesses dos seus países. Neste caso, tivemos governantes portugueses que, informados em vésperas de eleições da quebra das receitas fiscais, mesmo assim aumentaram salários e cortaram impostos com o único fito de serem reeleitos. Este problema não é, porém, do partido A ou do partido B, do país K ou do país W. Não foi o presidente americano que foi apanhado a segredar ao seu homólogo russo que teria de ser mais duro na retórica anti-russa por causa das eleições que se avizinhavam na América, mas que depois seria mais flexível? Trata-se de um problema geral e fundamental das nossas democracias. Na raiz de todas as dificuldades não estão as falhas ideológicas da direita e da esquerda, embora contribuam seriamente para elas, mas essa questão fundamental de os políticos porem a sua eleição à frente de tudo. É isso que viabiliza a corrupção no financiamento partidário e as interferências dos poderes económicos e financeiros nas decisões políticas, permitindo todos os joguinhos que 504

põem interesses particulares à frente dos interesses colectivos. É isso que leva os políticos a fazerem promessas irrealistas e a adoptarem políticas despesistas que a prazo conduzem à bancarrota. Quando a crise vem, conseguem até convencer os eleitores de que a culpa é dos outros, e em particular dos especuladores, um bode expiatório conveniente porque não tem rosto e não se pode defender. Os políticos querem ser eleitos e fazem tudo, mas tudo mesmo, incluindo vender a mãe e sacrificar os interesses dos seus países, para conseguir esse objectivo pessoal. Põem as eleições e os seus interesses particulares à frente de tudo o resto. Podem dizer que na origem da crise está o facto de todos vivermos acima das nossas possibilidades. Isso é parcialmente verdadeiro e deve-se à nossa incapacidade de competir com os produtos provenientes das economias emergentes. Mas metade, ou mais de metade da crise, deve-se a negociatas de governantes em actos resultantes de tráfico de influências e de corrupção despudorada, situações de que o cidadão comum não tem a menor culpa mas cujos prejuízos é chamado a pagar." Apontou para Marilú. "É este o problema central com o qual o processo do Tribunal Penal Internacional terá de lidar frontalmente e sem tergiversações se quiser ser bem-sucedido."

Quando Tomás se calou, um silêncio pesado impôs-se na Sala Botticelli. Foi a procuradora-geral do TPI, como de resto lhe competia, quem por fim o quebrou.

"Vai ser um processo diabólico", desabafou ela, uma nuvem de cansaço a toldar-lhe o olhar. "Vamos ter de sentar os governantes de uma série de países no banco dos réus."