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"Não se esqueça dos antigos..."

"Quais antigos?"

"A responsabilidade pela crise não se limita aos governantes dos últimos anos", lembrou o historiador. "As culpas são partilhadas por muita gente no passado. É preciso processar também muitos antigos 505

governantes por crimes contra a humanidade. Primeiros-ministros, ministros das Finanças, ministros das Obras Públicas, presidentes de governos regionais, governadores de bancos centrais, a maioria dos autarcas..."

"Também os autarcas? Mas assim a lista nunca mais acaba!"

Tomás abriu os braços, num gesto de impotência.

"Pois é, minha cara!", exclamou. "Se queremos processar os suspeitos de responsabilidade pela crise temos de ter consciência de que há muita gente envolvida, embora com diferentes graus de culpa.

E, se é assim em Portugal, também é assim em Espanha, na Grécia, na Irlanda, em Itália... em toda a parte."

A procuradora-geral esbracejou.

"Isso dá centenas de suspeitos, provavelmente milhares! Estamos a falar de um mega processo como nunca foi visto!"

Tomás não respondeu de imediato. Virou as costas, carregou no eject e o computador portátil vomitou o DVD. O historiador pegou no pequeno disco prateado e acenou com ele na direcção da procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional.

"Quatro pessoas morreram para que este material chegasse à sua posse", lembrou. "O que gostaria agora de saber é o que vai fazer com o que aqui tem."

A professora Agnès Chalnot fitou-o de olhos arregalados, na incerteza sobre o que responder. Ela, como de resto todos os presentes naquela sala dos Uffizi, tinha plena consciência de que essa era naquele momento a mais importante pergunta de todas.

O problema é que, considerando a imensidão do processo, não tinha resposta para lhe dar.

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LXXIV

A primeira pessoa a reagir na Sala Botticelli foi Axel Seth. Depois de observar o conteúdo integral cio DVD e de ouvir a exposição de Tomás, e aproveitando a perplexidade das autoridades, o presidente da Comissão Europeia tentou abrir caminho através do cordão de carabinieri formado em torno da congregação satânica.

"Deixem-me passar!", ordenou o juiz francês em tom assertivo, indicando a porta. " Allez, abram alas! Zut, alors! Tenho mais que fazer."

Recuperado do espanto, e hesitando quanto ao procedimento a adoptar, o chefe dos carabinieri lançou um olhar inquisitivo a Marilú, que por sua vez se virou para a procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional.

"O que fazemos?", perguntou a responsável da Interpol. "Levamo-lo dentro?"

Agnès Chalnot vacilou; no fim de contas estava em causa a detenção do presidente da Comissão Europeia e juiz no próprio processo em que ela era procuradora-geral. Não se tratava de uma decisão fácil de tomar e precisava de tempo para medir a situação.

"Bem...", balbuciou. "Quer dizer, o melhor é..."

As palavras hesitantes da procuradora-geral foram interrompidas por uma gargalhada de Axel Seth.

"Prender-me?", perguntou o juiz em tom de desafio, voltando-se para trás de mãos na ilharga. "Os senhores querem mesmo 507

prender-me? Sabem quem eu sou e quais os meus poderes? Têm noção de que, se puserem um pé em falso, eu vos trituro vivos?"

"Ninguém está acima da lei", retorquiu a professora Chalnot, talvez com menos convicção do que aquela que gostaria de imprimir às palavras. "No fim de contas o senhor... enfim, também partilha responsabilidades pelo que se passou, não é verdade?" Ganhava coragem à medida que falava. "Este processo é relativo a crimes contra a humanidade cometidos pelos responsáveis políticos e pelos agentes económicos e financeiros no processo que conduziu à crise, e quando começámos já sabíamos que nos íamos meter com peixe graúdo."

Apontou para o seu interlocutor. "O DVD mostra que o senhor também partilha responsabilidades nesta crise. Por isso terá de responder por elas. Se o nosso processo vai indigitar pessoas como todos os presidentes americanos desde Ronald Reagan, por que razão o presidente da Comissão Europeia seria poupado?"

Nova gargalhada de Axel Seth.

"Pobre tola!", exclamou o juiz, abanando a cabeça. "Pensa mesmo que os presidentes americanos e todos os outros que o seu colega Cano dei Ponte hoje nomeou na sessão preliminar alguma vez se sentarão no banco dos réus? É mesmo ingénua! Então não sabe que os Estados Unidos não reconhecem a autoridade do Tribunal Penal Internacional?

Alguma vez os Americanos vão entregar um presidente seu, antigo ou actual, para ser julgado aqui? Deve estar a brincar!"

"Claro que sei que os Americanos não vão entregar ninguém", empertigou-se a procuradora-geral. "O senhor já o disse, eles não reconhecem este tribunal. No que diz respeito aos suspeitos americanos, o processo é sobretudo simbólico."

"Simbólico, disse-o bem!", atalhou o presidente da Comissão Europeia, erguendo o dedo para sublinhar esse ponto. "E simbólico continuará

a

ser,

ma

chère!

Ninguém

com

verdadeiras

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responsabilidades pode ser julgado neste tribunal. Neste ou em qualquer outro, aliás. E muito menos eu! A senhora não sabe que, devido às minhas funções, gozo de imunidade judicial? Para que eu perca a imunidade, o Parlamento Europeu terá de se reunir e votar nesse sentido."

"É o levantamento dessa imunidade que tentaremos obter", disse Agnès Chalnot de pronto. "O meu gabinete irá de imediato formalizar um requerimento que entrará em Estrasburgo nesta próxima segunda-feira, com o intuito de..."

"Não seja absurda, madame!", cortou de novo Axel Seth. "Não vê que, embora em diferentes graus, todos os governantes europeus partilham responsabilidades pelo que se passou? Uns porque impingiram dívida aos periféricos, outros porque gastaram o que não podiam, todos porque só se preocuparam com as suas eleições. O

facto é que não há ninguém fora do barco, ma chère. Ninguém. Para me tirarem a imunidade, os governantes europeus terão de tirar a imunidade a si próprios, uma vez que sei de mais e ninguém sairia ileso desta história." Abanou a cabeça com veemência. "Não, madame. Não digo que não haja um escândalo e que nenhumas cabeças rolem e coisa e tal, mas nada de fundamental será feito nem o Parlamento Europeu me retirará imunidade. Os eurodeputados irão lamentar, claro, mas receberão ordens dos seus líderes partidários e será invocada uma qualquer razão técnica ou jurídica para me proteger. Sabe como é, a lei foi concebida cheia de alçapões. Ninguém tocará em mim, fique descansada. O mais que me pode acontecer é ter de me demitir da Comissão Europeia por declarações inapropriadas proferidas em privado, mais nada. Isso, porém, não me preocupa, porque nós, os políticos, cuidamos dos nossos, como já deveria ter percebido. Arranjar-me-ão com facilidade uns cargos generosamente pagos no sector privado e vou safar-me como todos os ex-governantes se safam. Além disso, o mais natural é que se 509

encontre um subterfúgio legal qualquer que impeça que se conheça o conteúdo desse malfadado DVD. Penso até que poderemos arranjar um qualquer presidente de um Supremo Tribunal que, alegando não haver nada de relevante nesse disco, dê ordens para o destruir.