Suspeitava até que teria de meter uns requerimentos em Lisboa e envolver-se numa complicada burocracia até conseguir superar a dificuldade. Assim sendo, de que lhe valeria falar com Maria Flor? A directora tornara muito claro que os proprietários não queriam conversa, mas o dinheiro em falta. E acesso ao seu próprio dinheiro era o que ele, bem vistas as coisas, ainda não tinha.
Nessas condições, a única coisa que poderia fazer era ir buscá-la 514
ao lar e tratar dela enquanto o bloqueio das contas bancárias não se resolvesse. O problema é que ele se encontrava em Florença e, mesmo que apanhasse o primeiro voo da manhã, apenas poderia ter a esperança de chegar a Lisboa ao princípio da tarde, uma vez que de permeio teria de apanhar um voo de ligação, pelo que só chegaria a Coimbra umas duas horas depois. No entretanto, só Deus sabia o que aconteceria à mãe. Como poderia sair daquela alhada?
Um toque na porta interrompeu-lhe os pensamentos. Estranhando uma visita a hora tão imprópria, enrolou-se na toalha de banho, abriu a porta e espreitou para o corredor.
"Posso?"
Era Raquel.
"Passa-se alguma coisa?"
A bela espanhola, que se encontrava envolvida num roupão branco, tirou as mãos de trás das costas e exibiu uma garrafa de espumante italiano e dois copos.
"Trouxe isto para comemorarmos", disse ela com um sorriso juvenil.
"Terminou o nosso pesadelo e parece-me uma óptima razão para improvisarmos uma pequenita fiesta, não achas?"
Tomás abriu totalmente a porta e, com um gesto, fez-lhe sinal de que entrasse.
"Vamos a isso."
A agente da Interpol invadiu-lhe o quarto e encheu os copos de champanhe.
"Qué pasa? Estás com cara de caso."
"É a minha mãe. Ando preocupado com ela."
"A tua mãe?", admirou-se a espanhola. "Aconteceu-lhe alguma coisa?"
O historiador sacudiu a cabeça; explicar a situação da mãe parecia-lhe muito complicado e até inútil, uma vez que Raquel não o poderia ajudar.
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"Não aconteceu nada", disse. "Esquece." Pousou o olhar nos copos que ela acabara de encher e, esforçando-se por deixar as preocupações de lado, até porque nada poderia resolver nesse instante, tentou animar-se. "Então, esse champanhe?"
A visitante estendeu-lhe o copo dele e depois ergueu alto o seu.
"Salud!"
"Tchim-tchim!"
Tomás tinha sede e, fechando os olhos, engoliu todo o champanhe do copo de uma só vez. Quando reabriu as pálpebras quase deixou cair o copo. O roupão de Raquel escorregara até aos pés e ela estava nua diante dele, o corpo sinuoso e bem desenhado, o peito arrebitado e ofegante, os grandes olhos verde-esmeralda a cintilarem.
"A fiesta tem banquete", ronronou ela, deslizando para a cama e abrindo os braços convidativos. "Faz-me o que devias ter feito naquela sala de demónios, cariño..."
"O champanhe não estava mal", murmurou o português, contemplando o corpo bem desenhado da mulher, "mas o prato principal parece de arromba!"
Com um gesto rápido e uma gargalhada travessa, a espanhola agarrou a toalha que o cobria e puxou-a, desnudando-o também.
"Hola!", exclamou ela, arregalando os olhos perante o que via.
"Também não me posso queixar..."
Tomás deixou-se resvalar para a cama e, como um náufrago, afundou-se num abraço feito de gemidos e suspiros, sentindo a carne quente e palpitante da mulher, a pele aveludada a tornar-se leitosa e arredondada nos seios e nas nádegas, a garganta a arquejar de volúpia, os olhos entreabertos de desejo, as entranhas húmidas e sequiosas, os corpos a contorcerem-se no dueto de um movimento sincronizado, os lábios molhados entreabertos com sofreguidão, gulosos e glutões, as línguas sôfregas a digladiarem-se numa refrega sedenta, imitando os corpos na gula insaciável de amantes que se 516
descontrolavam e perdiam numa sinfonia de vagidos ofegantes, espada a penetrar em carne, pedra áspera na almofada de seda, gelo no fogo, uma dança de ritmo crescente, primeiro devagar, a fruir o toque, a saborear a lenta doçura do instante, depois a ganhar velocidade à medida que o corpo pedia mais e mais, como uma locomotiva a acelerar, a bigorna a bater em ferro em brasa, o...
"Não!", disse ele de repente. "Não!"
Saiu dela e rolou para o lado.
Raquel abriu os olhos, apanhada de surpresa com a interrupção, na verdade sem entender o que sucedera.
"Qué pasa?", perguntou, alarmada e atarantada. "Que aconteceu?
Porque paraste?"
De pálpebras cerradas, o português abanou a cabeça.
"Não."
Ela apoiou o cotovelo na cama e ergueu-se, observando-o para ver se estava tudo bem.
"Não, o quê?"
Tomás respirou fundo e abanou a cabeça.
"Desculpa, mas não posso", titubeou. "Não posso, não posso."
"Porquê? O que se passa?"
O português ergueu o braço e indicou a porta do quarto. "Tu não tens culpa, não é nada contigo, mas... preciso de ficar sozinho."
A espanhola abriu a boca, sem saber o que pensar. "Estás a mandar-me embora?"
"Sim, por favor", confirmou ele, sem vontade de se explicar.
"Desculpa, mas não posso. Preciso de ficar só."
Raquel saltou da cama e vestiu o roupão com gestos bruscos, a fúria a crescer-lhe no corpo e a indignação a enrubescer-lhe a face.
"Cabrón de mierda", resmungou entre dentes, "hijo de puta, coro de maricón!"
Sem olhar para trás, saiu do quarto como um furacão e bateu a 517
porta com violência. Enfim sozinho, Tomás enroscou-se na cama e puxou o lençol, ele próprio sem compreender o que fizera e porque o fizera. A única coisa que sabia é que, enquanto amava e beijava e penetrava aquela mulher que tão inesperadamente rejeitara, um rosto se lhe impusera com tal força que fora incapaz de prosseguir, uma cara materializara-se-lhe diante dos olhos, travara-lhe o corpo e obrigara-o a parar.
Maria Flor.
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Epílogo
O céu escurecia já sobre os pinheiros e o clarão crepuscular do Sol tornara-se um hálito arroxeado no horizonte quando a pacatez na praceta foi quebrada pelo guinchar da travagem repentina de um automóvel. O
Volkswagen azul estacionou com grande fragor diante da vivenda no meio do pinhal, o motor traseiro a estalar de fadiga depois da corrida louca de Lisboa até Coimbra, e o silêncio só voltou quando a viatura foi desligada. Ouviu-se uma porta a abrir e o condutor saltou para o passeio e, apressado, correu a tocar à campainha da moradia.
Soaram passos no interior do edifício e uma mulher de bata e touca branca abriu a porta do Lugar do Repouso e olhou para o exterior.
"A minha mãe?"
A pergunta de Tomás foi atirada de chofre, com ansiedade e impaciência, sem sequer uma saudação preliminar.
"Boa tarde, professor Noronha", devolveu ela com um sorriso profissional. "Veio ver a dona Graça?"
"Onde a puseram?"
A empregada deu um passo para o lado, convidando-o a entrar.
"Faça o favor", disse. "Está lá em cima, no quarto dela. Faça o favor de subir."
Sem se preocupar com cerimónias, Tomás franqueou a entrada e 519