Porque o mundo pode estar de pernas para o ar, mas eu ao menos ainda sei quais são as minhas prioridades e responsabilidades! Porque, enfim, tenho vergonha na cara e sei que há muito mais na vida do que vender a alma por um punhado de patacos!"
Falou com exaltação, com o arrebatamento das pessoas que sabiam quem eram e para onde iam, e Tomás teve nesse instante vontade de a abraçar e a beijar e fazer com ela o que ainda nessa noite não conseguira fazer com Raquel. Mas conteve-se. Até então tinha mantido com Maria Flor uma relação estritamente profissional, ela era a directora do lar, ele o filho de uma idosa ali alojada.
Tornava-se evidente, todavia, que uma linha invisível entre os dois havia sido cruzada e não existia caminho de retorno.
Quando Maria Flor se calou, Tomás agradeceu-lhe por ele, pela mãe, pela compaixão que ela sentira por eles. Ainda pensou em pagar-lhe o valor que a directora metera do seu próprio bolso mas teve vergonha, percebeu que seria um insulto à grandeza e ao gesto de profunda humanidade de que fora objecto e por isso conteve-se.
Agradeceu até ficar sem mais palavras e perceber que o agradecimento a embaraçava, que ela na realidade nada fizera em 524
busca de reconhecimento mas apenas procedera com naturalidade, em verdade para consigo mesma.
De repente sem nada para dizerem um ao outro, como se à linha invisível que haviam cruzado se tivesse acrescentado uma barreira incorpórea mas estranhamente palpável, um silêncio desconfortável instalou-se entre ambos. Sentindo-se sem jeito nem conversa, atrapalhado pelo mutismo incómodo que surgira entre eles, o visitante levantou-se por entre palavras desajeitadas, dizendo que já se ia fazendo tarde e que estava na hora de se ir embora.
A directora permaneceu embatucada e balbuciou umas palavras de circunstância que ele nem percebeu, tão assarapantado se sentia.
Ao chegar à porta do lar, porém, Tomás estacou e fitou-a naqueles olhos castanhos, tão abertos e verdadeiros. Tentou dizer alguma coisa que expressasse o turbilhão que lhe ia na alma, mas nada lhe saiu e, derrotado, desistiu. Levantou a mão em despedida e, o espírito num tumulto, começou a caminhar em direcção ao automóvel, a timidez a vencer a ousadia, a inibição a impor-se ao atrevimento, a razão a ganhar à emoção. Pensou que tinha era de ter juízo e respeitar aquela mulher e o seu gesto e não fazer disparates.
Deteve-se a meio caminho, a vontade a desobedecer à cabeça, o coração a rebelar-se contra as convenções, o corpo todo ele em insurreição. Porque não proceder como o instinto lhe sugeria?, porque não render-se à doce tentação da loucura?, porque não escutar a voz que lhe soprava sussurros de atrevimento? Virou-se e olhou-a de novo, a coragem subitamente recuperada, a ousadia enfim vencedora. Maria Flor permanecia à porta do lar, os olhos brilhantes, o rosto corado, o cabelo a esvoaçar sob o efeito da brisa que soprava fresca de norte, como se a noite acabada de cair a quisesse abraçar com tanta vontade como ele.
"E que tal se fossemos jantar?"
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Nota Final
É difícil escrever sobre a Segunda Grande Depressão sem, de uma maneira ou de outra, mesmo que não o queiramos, nos posicionarmos no aceso debate ideológico que esse traumático acontecimento suscitou. A esquerda diz que a culpa é dos mercados desregulados, da ganância e do liberalismo económico, a direita responde que a verdadeira causa é o despesismo desmedido e o enorme estado social que a menor riqueza gerada já não consegue sustentar.
Como falar sobre a crise e as suas causas sem ser catalogado como "esquerdista irresponsável" ou "neoliberal radical"? Como fazê-lo sem ser arrastado para o debate ideológico, político e até partidário que o colapso financeiro e económico radicalizou? Talvez não seja possível. Falar sobre economia implica necessariamente uma certa visão do mundo. Haverá forma de escapar a essa armadilha ideológica e mesmo assim abordar o problema nas suas vertentes essenciais?
No seu romance I Married a Communist, Philip Roth de certo modo resolveu o dilema quando pôs um personagem a reflectir sobre a diferença entre o comunismo e o capitalismo. "Tudo o que os comunistas dizem sobre o capitalismo é verdadeiro", disse ele mais ou menos assim, em conversa com Nathan Zuckerman, o alter ego de Roth. "E tudo o que 526
os capitalistas dizem sobre o comunismo é também verdadeiro. A diferença, rapaz, é que os comunistas se baseiam no conto de fadas de que somos todos iguais e criam um estado policial para impor à força essa visão, enquanto o capitalismo se baseia em leis da natureza que, bem ou mal, existem de facto."
O mesmo, parece-me, se pode dizer sobre esta crise. O que a esquerda defende é verdadeiro, o que a direita afirma também. E ambas desvalorizam o que não lhes convém, embora igualmente verdadeiro. É
verdade que a experiência mostra que os mercados não podem ser deixados à solta e que, como estabeleceu Marx, o capitalismo encerra em si contradições que conduzem à sua própria destruição; e é verdade que, maior do que a dívida pública, é a dívida privada contraída pelas famílias e pelas empresas com a cumplicidade gananciosa dos bancos.
Mas também é verdade que o sonho do estado social se está a desmoronar perante o colapso do crescimento demográfico e a estagnação económica nos países industrializados e que não é possível sustentá-lo sem criar mais riqueza do que aquela que está a ser produzida; e é verdadeiro que as nossas economias enfrentam uma séria crise de competitividade perante os produtos oriundos das economias emergentes onde se praticam salários miseráveis, o que nos põe perante um dilema terríveclass="underline" ou aceitamos que nos baixem os salários para que os bens que produzimos tenham preços competitivos, ou vamos para o desemprego porque as nossas empresas não conseguem sobreviver perante uma concorrência com preços tão agressivamente baixos.
Igualmente verdadeiro, existe um problema sério na forma como as nossas democracias estão a funcionar. Os políticos não buscam a resolução dos problemas, mas a sua eleição. Isto é válido para todos os políticos. Todos.
O que levanta interrogações naturais sobre a maneira como governam e como financiam as campanhas para as suas eleições. Por que razão se constrói uma determinada auto-estrada? Porque ela é realmente necessária ou porque uma construtora civil deu determinada quantia para a campanha 527
eleitoral de um partido e o político tem de retribuir o favor com o dinheiro dos contribuintes? E quando a Alemanha ou a França financiam um projecto em Portugal ou na Grécia fazem-no realmente para ajudar os Portugueses e os Gregos ou para ajudar as suas próprias empresas, num esquema de subsídio indirecto e disfarçado de ajuda? Todos dizem que a primeira opção é a resposta, todos intuímos que a segunda é que é verdadeira.
A Mão do Diabo apresenta uma avaliação das economias feita com base nas opiniões de economistas eminentes. Nada é minha opinião, tudo o que está escrito resulta do diagnóstico feito por profissionais. O livro inclui por isso informação económica e financeira genuína. De resto, trata-se quase sempre de informação pública. Contudo, o último segmento do romance, aquele em que se conhece o teor do DVD, apresenta-nos informação que não é necessariamente pública. Mas é, no seu espírito, verdadeira, embora devidamente mascarada pelas roupagens da "ficção".