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Definitivamente, não podia ser um mero sonho, as palavras eram demasiado reais para isso. Apesar da debilidade que se apoderara dele, reabriu os olhos e concentrou a sua atenção na sombra. Tudo lhe parecia baço e lento, como se estivesse com uma ressaca.

"Que... que se passa?"

Os olhos focaram o vulto diante dele e a mancha escura adquiriu contornos até formar primeiro as linhas de um rosto e depois as expressões de uma pessoa. Mirou a face interrogativamente, como uma criança a estudar um animal que nunca vira antes, e após alguns longos segundos reconheceu por fim o que fitava com tanto esforço.

Era o professor Markopoulou que lhe sorria.

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VI

A esponja estava molhada e era fria, mas revelou-se justamente aquilo de que Tomás mais precisava no momento em que recuperou os sentidos. O professor Markopoulou passou-a devagar sobre a testa e o rosto do colega, sempre com especial cuidado nas partes manchadas por nódoas negras, inchaços e outros hematomas.

O português passou o olhar dormente pela cela. Viu o recluso alemão sentado na esteira vizinha, a cabeça ligada e dois adesivos na cara, a seguir atentamente os cuidados que o arqueólogo grego dedicava ao colega que viera de Lisboa.

"Ach, parece que lhe devo a vida", disse o alemão num inglês levemente gutural. "Muito obrigado pela sua intervenção. Sem ela..."

Bufou, como se nem se atrevesse a pensar no que lhe teria sucedido.

"Mein Gott!..."

Tomás fez um esforço para sorrir.

"Não se preocupe."

O alemão levantou-se do seu lugar e estendeu-lhe a mão.

"O meu nome é Sammer", apresentou-se. "Josef Sammer, mas os amigos chamam-me Sepp."

Tomás apertou-lhe a mão com um esgar de dor; o esforço de levantar o braço revelou-lhe contusões insuspeitadas no ombro.

Depois de trocar algumas amabilidades com o homem pelo qual quase perdera a vida, desviou os olhos para o resto da cela, procurando os anarquistas que o haviam agredido; não vislumbrou 55

sinal deles. Na verdade, o espaço até lhe parecia diferente.

"Onde estamos?"

O arqueólogo grego passou uma última vez a esponja pela cara do ferido e depois recolheu-a; já servira o seu propósito.

"Mudaram-nos de cela", revelou, endireitando o tronco. Quando eles o atacaram, consegui chamar o graduado de serviço e ele interveio com mais dois colegas. Foi uma tourada, mas os guardas conseguiram retirar-vos dali com ajuda dos tasers. Como não havia condições para permanecermos todos no mesmo espaço, transferiram-

-nos aos três para esta cela. Depois veio o médico e tratou de vocês. O

doutor disse que depois voltaria para vos fazer uns exames."

Tomás arrebitou as sobrancelhas, subitamente animado.

"Ena! E sem receber um tostão, hem?"

O professor Markopoulou inclinou a cabeça de lado, esboçando um esgar de repreensão.

"Sem receber um tostão de si", precisou. "Eu cá tive de lhe pagar cem euros de fakelaki para ele vos tratar."

O alemão, que escutava a conversa com um certo ar constrangido, soltou neste ponto uma gargalhada sonora.

"Ach! Este país não existe!..."

O arqueólogo voltou a cabeça para trás e lançou-lhe uma mirada carregada de ressentimento.

"Olha lá, ó nazi, tu está calado, ouviste?", disparou com súbita agressividade. "Se fosse a ti tinha mas é tento nessa Iíngua de porco!

Estás cheio de sorte por teres ficado vivinho e devias era agradecer a todos os santinhos que vocês têm lá na nazilândia em vez de andares armado em engraçadinho."

"Como se atreve?", protestou Sepp. "Não sou nazi e não tolero que me trate desse modo!"

"Ai não? Então por que razão falas a língua do Hitler?"

"O que tem uma coisa a ver com outra?"

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"Tem que vocês pensam que a Europa é um feudo do Reich e toda a gente está aqui para ser escravizada." Apontou o indicador ao seu interlocutor. "Pois tenho notícias para ti, ó palerma! Isso não resultou em 1939 e não vai resultar agora! A Alemanha deu-se mal na altura e vai dar-se mal outra vez! Os filhos dos nazis não têm o direito de dar ordens aos Gregos, ouviste? Vocês andam a brincar com o fogo e depois admiram-se que toda a gente vos odeie..."

O alemão centrou a atenção em Tomás, querendo testar a afirmação que acabara de escutar.

"O senhor odeia-me?"

"Eu? Claro que não."

O professor Markopoulou soltou um estalido agastado com a ponta da língua.

"Isso é porque o professor Noronha anda distraído e ainda não reparou no medicamento que vocês, lobos a fingirem-se de cordeiros, andam a receitar. Transformaram o nosso país numa Dachau económica e farão o mesmo com o resto na Europa! Quando o professor Noronha provar a vossa receita de Zyklon-B de austeridade até à última gota logo muda de opinião. Espere e verá!..."

A observação extraiu um esgar contrariado de Sepp, que abanou insistentemente a cabeça como se estivesse diante de um caso perdido.

"O vosso problema é que são incapazes de assumir as vossas próprias responsabilidades", considerou. "A única coisa que pelos vistos sabem fazer é atirar as culpas para os outros."

"Atiramos-vos as culpas porque vocês é que nos puseram nesta situação!", devolveu o grego de dedo apontado. "Os Alemães é que estão a fugir às suas responsabilidades!"

Sepp Sammer fez um gesto largo a indicar a cela onde se encontravam.

"O senhor já reparou que o seu país ainda vive na Idade Média?", atirou com desdém. "A Grécia é governada desde a Segunda Guerra por apenas duas famílias, os Papandreou e os Karamanlis." Ergueu dois dedos 57

em V. "Duas famílias! Já pensou bem? Isso mostra o tipo de país onde estamos. Já viu que a Grécia é o estado da Europa que tem vivido mais anos em incumprimento da dívida? Desde 1826 que vocês têm passado cinquenta por cento da vossa existência em incumprimento! Como podem agora dizer que a culpa é da Alemanha?"

"Não desvie o assunto", retorquiu o professor Markopoulou, a cara enrubescida de irritação. "Vocês estão a estrangular-nos com a vossa chantagem e a vossa austeridade cega! Se ela é assim tão boa, porque não a praticam?"

"E quem disse que não a praticamos? Para sua informação, a Alemanha viveu uma crise económica e social na década que se seguiu à reunificação. Em 2003, quando vocês estavam em pleno regabofe de despesas descontroladas com o nosso dinheiro, o meu país congelou os salários, limitou as contratações públicas, cortou regalias aos desempregados, facilitou o lay-off e ajudou as empresas. E isto sem choramingar, sem estender a mão a ninguém e sem receber a ajuda de quem quer que fosse! Se hoje estamos bem é porque actuámos em tempo útil. A nossa economia, ao contrário da vossa, não depende de fantasias irrealistas."

"Isso é tudo conversa!"

"Não é não! O que fizeram vocês quando nós estávamos a apertar o cinto em silêncio? Andavam a gastar à tripa-forra o dinheiro que não tinham! Aliás, desde a década de 1980 que a Grécia vive num mundo de faz-de-conta. Elege um governo, aumenta desmesuradamente salários e pensões, a economia rebenta e lá vem o vosso país de mão estendida pedinchar ajuda externa. Quantas vezes isso não vos aconteceu já? O