O cenário não era animador e Tomás ficou sem saber o que dizer.
"Pois é, Horácio. Isto parece mesmo difícil."
O homem do restaurante respirou fundo, como se ele próprio estivesse já a preparar-se para fugir para o estrangeiro.
"Atão não está, sô professor? Estes políticos falam, falam, mas não fazem nada! Só sabem apertar e gamar, e a malta é que se lixa, n'é verdade?"
"Pois é, pois é."
Horácio retirou o bloco de apontamentos do bolso e preparou-se para tomar notas.
"Ora diga lá, sô professor", entoou num tom subitamente profissional. "O que vai ser hoje? Temos um bacalhau à Zé do Pipo que está um estalo. E a douradinha... ui, veio tão fresquinha qu'até parece qu'inda se passeia pelo mar, a malandra."
"Está mesmo fresca ou isso é conversa?"
O empregado fez uma expressão ofendida.
"Or'essa, sô professor! Acabou de vir da lota, eu próprio fui lá buscá-la. Um mimo, só lhe digo."
"Então traga-a lá."
"A douradinha grelhada com arrozinho de tomate e um copinho de branco, sô professor?"
"Isso." Ergueu o dedo para fazer uma ressalva. "Branco do Douro, se fizer o favor. Bem geladinho."
O empregado registou o pedido no bloco de notas e afastou-se em passo apressado. Tomás recostou-se na cadeira e descontraiu; tinha 67
fome e o peixe grelhado vinha mesmo a calhar depois da dieta forçada a moussaka e calamari na esquadra de Atenas.
Sem nada para fazer enquanto esperava pelo prato, desviou a atenção para o televisor pregado à parede. Decorria o noticiário e um apresentador orelhudo com expressão sisuda dava notícias frescas da crise; uma imagem gráfica ao lado dele mostrava o rosto compenetrado do presidente da Comissão Europeia, um juiz de profissão que abraçara a política, e, por baixo, a palavra "inquérito".
"Axel Seth foi nomeado juiz do processo judicial às origens da crise financeira e económica", noticiou o apresentador. "O processo está a ser conduzido pelos procuradores Agnès Chalnot e Carlo del Ponte, a quem o presidente da Comissão Europeia exige resultados rápidos. O juiz Seth responsabilizou os mercados financeiros e os banqueiros gananciosos pelo colapso da economia mundial e acusou-os de terem um plano secreto para destruir o estado social."
O ecrã encheu-se com a imagem do homem-forte de Bruxelas, um francês alto e magro, a falar num palco em tom solene perante uma plateia atenta de homens engravatados.
"Os especuladores, essa gente sem rosto que opera na sombra e busca o lucro fácil à custa do trabalho e do sofrimento do cidadão comum, têm de responder pelos seus actos criminosos, porque a culpa, meus caros amigos, a culpa não pode morrer solteira!", declarou o juiz Seth com grande convicção, as palavras pronunciadas com força, gestos enfáticos a reforçá-las. "Aqui assumo pois o meu compromisso de que a justiça actuará, célere e impiedosa, no sentido de restituir a ordem e punir os responsáveis pela dramática situação em que o mundo mergulhou!"
Uma entusiástica salva de palmas no auditório acolheu estas palavras. O apresentador passou para a notícia seguinte e Horácio regressou à mesa com o couvert, uma cesta de pão e um queijo de Azeitão fatiado.
"G'and'a homem!", exclamou o empregado com um suspiro aprovador. "É
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ele que vai pôr enfim a malandragem na ordem!"
"Convenhamos que é um bocado estranho o presidente da Comissão Europeia ser nomeado juiz..."
"O gajo é juiz de profissão, s'ô professor. A malta de Bruxelas quer mostrar assim que leva esta coisa muito a sério e que o processo vai ser a doer. Houve um tipo que disse no telejornal que uma situação extraordinária como esta crise requer um juiz extraordinário."
"Já vi que você anda a seguir as notícias, Horácio."
"Pois atão, tenho de seguir! Preciso de perceber se terei ou não de fechar o estaminé, n'é? As notícias ajudam-me a topar o que se passa neste mundo louco!" Fez um gesto a indicar o televisor. "Esse juiz, por exemplo, é a nossa grande esperança! Um homem íntegro e religioso como não há muitos!"
"Religioso? Como sabe você isso?"
"Atão não sei, s'ô professor? Noutro dia contaram a vida dele ali na televisão. O homem chamava-se Bagus ou coisa qu'o valha, e aos vinte e tal anos mudou de apelido e adoptou o nome de um personagem bíblico."
"Seth?"
"Seth, terceiro filho d'Adão e Eva, irmão de Caim e Abel", disse Horácio.
"Leia a Bíblia, sô professor! Leia o Génesis, 4:25!"
"Pois, tem razão. Seth foi concebido para substituir Abel, que Caim tinha morto. Se bem me lembro, a tradição judaica estabelece Seth como antepassado de Noé, o que faz dele antepassado de todos nós, não é verdade?"
"Tem nome de planta, dizem."
"Nome de planta?", admirou-se Tomás. Fez um esgar, pensativo.
"Quer dizer, a origem etimológica do nome Seth está na palavra hebraica que se refere à semente das plantas. Suponho que isso faz de Seth uma semente."
O homem fez um novo gesto na direcção do televisor. "A semente da justiça", proclamou. "Um santo nome para um santo homem!"
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Nesse semestre Tomás não tinha aulas, razão pela qual aceitara o trabalho que lhe fora solicitado pelo Museu Arqueológico de Atenas, mas isso não impedia que houvesse coisas para fazer. Haviam sido publicadas recentemente em Israel novas descobertas referentes aos manuscritos do Mar Morto e o historiador queria incorporar essa informação na matéria do semestre seguinte.
Depois do almoço, Tomás regressou por isso ao seu apartamento.
Foi preparar um café e acomodou-se no escritório com o caderno de apontamentos para as aulas, uma lupa e as cópias dos pergaminhos de Qumran que lhe haviam chegado recentemente de Jerusalém.
Começou a lê-los e a rabiscar a tradução no caderno, mas depressa se sentiu oprimido pela solidão e ligou o rádio em busca de companhia.
O som de uma canção dos U2, "Sometimes You Can't Make It on Your Own", encheu o escritório e embalou-o para o trabalho. Os pensamentos dos essénios eram realmente apaixonantes, em particular a sua visão da grande batalha final entre os filhos da luz e os guerreiros das trevas, ou seja, entre o bem e o mal, Deus e o Diabo. Parecia-lhe evidente que os essénios faziam a ligação entre o pensamento zoroástrico, que profetizava a derrota de Ahriman no fim dos tempos, e a escatologia cristã, que previa a chegada do Reino de Deus e a submissão dos ímpios ligados ao mal.
Às três da tarde em ponto, como sucedia de hora a hora, a estação de rádio onde o seu aparelho estava sintonizado interrompeu a programação musical para um pequeno noticiário.
Soou o curto genérico musical do noticiário e uma voz Masculina rasgou o ar.
"Boa tarde, o Tribunal Penal Internacional anunciou que irá marcar para breve a sessão preliminar do processo para investigar as causas da crise e acusar formalmente os responsáveis por crimes contra a humanidade", anunciou o apresentador. "O anúncio seguiu-se à nomeação do presidente da Comissão Europeia, Axel Seth, para juiz desse processo. Seth 70
tem exigido que o processo seja mais célere, de modo que se punam o mais depressa possível os especuladores, que ele responsabilizou pelo caos na economia mundial."