O noticiário prosseguiu com informações sobre os preparativos para a Cimeira Europeia em Roma, onde a crise das dívidas soberanas seria de novo discutida daí a alguns dias, mas a atenção de Tomás regressou aos manuscritos do Mar Morto e à teologia dos essénios, assuntos que lhe pareciam bem mais apaixonantes.
Nesse instante tocou o telemóvel.
"Boa tarde", cumprimentou a voz feminina do outro lado da linha com uma certa musicalidade. "Posso falar com o professor Tomás Noronha?"
"Sou eu mesmo."
"Olá, professor. Daqui Graciete Batalha, do gabinete do director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O senhor director convocou-o para uma reunião amanhã de manhã, pelas nove horas. O professor Água pode contar consigo?"
"Com certeza." Hesitou. "Qual é o assunto?"
Foi a vez de a voz do outro lado hesitar.
"Isso... enfim, não posso dizer, receio bem", balbuciou a secretária, evidentemente embaraçada. "É... é matéria confidencial."
"Hmmm… estou a ver. Nove da manhã, não é?"
"Nove em ponto, se fizer o favor. Até amanhã."
Tomás desligou o telefone e permaneceu um longo minuto a passar em revista a conversa. "Matéria confidencial", dissera ela. Que estranho. E a própria perturbação quando a questionara sobre o tema da reunião também não lhe parecia normal. Que raio de assunto delicado seria esse que não podia ser exposto ao telefone?
Incapaz de encontrar respostas nesse momento, abanou a cabeça e sacudiu a perplexidade da mente; cada coisa a seu tempo.
No dia seguinte saberia.
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VIII
O murmúrio suave do ar condicionado e o ambiente soturno das paredes forradas de madeira conferiam ao secretariado do gabinete do director um ar tranquilo e acolhedor propício à sonolência. Tomás chegara à hora prevista à sua faculdade da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionava no Departamento de História, e a secretária do director mandara-o aguardar sentado num sofá tão macio que parecia convidá-lo a uma soneca. O historiador acordara nessa manhã cedo para vencer o trânsito de Lisboa, nos tempos que corriam menos intenso do que noutros anos mas mesmo assim suficientemente irritante, e, mergulhado na modorra doce em que a ambiência suave do gabinete o embalara, fez um esforço por se manter acordado e combater o peso que se lhe formara nas pálpebras, mas sem grande sucesso.
"Senhor professor?", murmurou uma voz feminina. "Senhor professor, está a ouvir-me?"
Como se fosse atingido por um raio invisível, Tomás endireitou-se com um salto e, o olhar desfocado pelo sono, viu Graciete Batalha plantada diante dele.
"Desculpe!", titubeou, atarantado e estremunhado. "Acho que passei pelas brasas!..."
A secretária exibiu um sorriso profissional.
"Fez muito bem", disse no mesmo tom suave. Indicou com um gesto a porta ao lado do secretariado. "O senhor director já o pode 72
atender. Faça o favor de entrar."
O historiador bocejou e pôs-se de pé com vontade de se espreguiçar, mas conteve-se e conseguiu distender os músculos com discrição. Seguindo as indicações da secretária, dirigiu-se à porta do gabinete do director da faculdade e franqueando-a, deparou-se com o seu superior hierárquico sentado numa escrivaninha a assinar papéis.
"Dá-me licença?"
O director da faculdade levantou o olhar por cima dos óculos encavalitados na ponta do nariz.
"Ah, professor Noronha!" Ergueu-se do seu lugar e, de mão estendida, veio acolher o recém-chegado à porta e indicou-lhe um sofá.
"Entre, faça o favor! Esteja à vontade!"
"Obrigado."
Com gestos formais, quase a sentir-se uma múmia dentro de um fato, Tomás instalou-se no lugar indicado e o seu anfitrião sentou-se num cadeirão diante dele.
"Vai um cafezinho?"
"Não, obrigado. Já tomei o pequeno-almoço."
O director prendeu nesse instante a atenção no rosto maltratado do seu subordinado.
"Oh, o que lhe aconteceu?", admirou-se. "Foi atropelado por um camião ou quê?"
O historiador passou a ponta dos dedos pelo inchaço sobre o olho esquerdo e hesitou; poderia aldrabar uma desculpa qualquer, como fizera nos últimos dias sempre que o interrogavam sobre as equimoses na face, mas estava diante do director da faculdade e pareceu-lhe que deveria ser sincero.
"Foi uma chaticezinha que tive na Grécia", explicou. "Fui convidado para fazer uma peritagem a um manuscrito avéstico recentemente descoberto em Atenas e acabei por me ver apanhado numa manifestação contra a crise. Aquilo acabou tudo à batatada e... olhe, acabei por levar 73
por tabela." Encolheu Os ombros num gesto de resignação. "Ossos do ofício, não é verdade?"
"Que horror!", exclamou o director. "O professor já foi ao hospital ver isso?"
"Sim, está tudo bem."
O anfitrião abanou a cabeça com incredulidade, a atenção ainda presa às equimoses que desfiguravam a cara do seu subordinado.
"Veja lá o ponto que as coisas chegaram! Aquilo por lá está mesmo assim tão mal?"
"Nem imagina."
O director calou-se por momentos, possivelmente a meditar nos acontecimentos que abalavam a periferia da Europa. Os dois homens conheciam-se apenas de pequenas conversas de circunstância; no fim de contas tinham origens diferentes e a faculdade era um espaço tão vasto que nem todos os Professores se relacionavam. O director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa chamava-se João Água e viera do Departamento de Ciências da Comunicação, enquanto Tomás fizera toda a sua carreira académica no Departamento de História. O
convívio entre professores de departamentos diferentes era raro e quase só acontecia em assembleias-gerais ou em reuniões especiais da faculdade.
João Água respirou fundo.
"Como sabe, nós também não estamos grande coisa"' disse. "A crise alastrou pela Europa e depois da Islândia, dos países bálticos, do Leste da Europa, da Grécia e da Irlanda, Portugal foi atingido com toda a força por este furacão destruidor antes de ele seguir para Espanha e Itália. Desde que o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia cá chegaram que isto é só cortar, cortar, cortar. O
desemprego disparou e a austeridade não tem fim."
"Então não sei?", retorquiu Tomás. "Cortaram-me o salário e aumentaram os impostos. A vida está cada vez mais difícil e parece que 74
não vamos para melhor."
"Os principais cortes estão a decorrer na saúde, na Segurança Social e nos transportes, onde as despesas estavam pelos vistos descontroladas. Mas a razia estende-se a todos os sectores do estado e, receio bem, envolve também o Ministério da Educação."
"Parece que houve milhares de professores do secundário que não foram colocados, não foi?"
O director da faculdade revirou os olhos.
"Um horror!"
"O que nos vale é a autonomia do ensino universitário", observou Tomás. "Senão, também os tínhamos à perna!..."
A observação desencadeou um ataque de tosse do anfitrião.
João Água bebeu um gole de água e, quando pousou o copo, respirou fundo, como se ganhasse balanço.
"Pois, o problema é que a autonomia universitária tem limites", observou. "E os maiores limites têm a ver justamente com a questão do financiamento. Como sabe, o estado está sem dinheiro e por isso deixou de ser o principal financiador das universidades. Para compensar a perda desses fundos, temos andado a virar-nos para os privados e a fazer investigação vocacionada para o mercado e paga pelas empresas. Essa actividade tornou-se uma importante fonte de financiamento. Outra são as propinas, claro. O problema é que a crise tem estado a afectar também todo o sector privado, que retraiu as suas despesas e deixou de nos fazer encomendas, e as famílias, que têm menos dinheiro disponível para pagar propinas. Há até um número crescente de estudantes a desistir da faculdade por falta de dinheiro. Ou seja, o estado, as empresas privadas e os estudantes começaram a pagar menos, o que significa que entra menos dinheiro nas universidades. A situação está a tornar-se insustentável."