"Então, presumo eu, é preciso cortar nas despesas."
"Pois, é justamente isso o que estamos a fazer. Controlámos os 75
gastos em energia, nas fotocópias, em material educativo, em equipamento de limpeza, na compra de livros.., enfim, cortámos em tudo o que podíamos cortar."
Fez-se um silêncio inesperado no gabinete.
"E então?"
O director da faculdade abanou a cabeça.
"Não chega."
"Não chega como?"
"Não chega."
"Tem de chegar", insistiu Tomás. "As despesas têm de ser equivalentes às receitas, isso é evidente. É uma questão de ver qual a principal fonte de despesa da faculdade e actuar aí."
João Água agitou-se no seu lugar; parecia incomodado e o seu subordinado percebeu que isso não estava relacionado com o cadeirão onde se encontrava sentado, mas com o tema da conversa.
"A nossa principal fonte de despesa é o pessoal", indicou. "Mais exactamente o quadro docente."
"A sério?", admirou-se o historiador. "Não fazia ideia. Qual é o peso dos professores nas despesas da faculdade?"
"Mais de noventa por cento."
A revelação deixou Tomás boquiaberto. Por momentos chegou a pensar que ouvira mal, o peso era tão incrível que só poderia tratar-se de um equívoco, mas o semblante carregado do seu interlocutor não lhe deixava dúvidas. Ouvira bem. .
"Noventa por cento?"
O director balançou afirmativamente a cabeça.
"Receio bem que sim."
"Mas... mas... como é isso possível?", questionou o historiador, ainda atónito. "Não há outras despesas?"
"Haver, há. Mas são relativamente marginais. Repare, uma universidade é sobretudo feita pelos professores e pelos alunos. Tudo 76
o resto, se for a ver bem, é coisa pouca. São as instalações e alguns funcionários administrativos ou de limpeza, a generalidade com salários baixos. A fatia de leão das despesas vai para os professores, como é evidente. Acredite ou não, eles levam mais de noventa por cento do orçamento anual."
Tomás permanecia estarrecido; nunca imaginara que as universidades gastassem tanto no corpo docente. Mas, bem vistas as coisas, os professores eram realmente os principais activos das universidades. Sem eles nada seria possível.
"E... e agora?"
"Temos de cortar as despesas", repetiu o director da faculdade.
"As receitas caíram e, como o professor reconheceu ainda há momentos, os gastos têm de se adequar a essa realidade. Em conformidade, iniciámos um programa para reduzir o nosso quadro de pessoal. Passei toda a semana a chamar aqui ao meu gabinete professores que não pertencem ao quadro para lhes explicar a situação e lhes dizer que, infelizmente, não podemos continuar a contar com eles, como seria nosso desejo, devido à situação terrível em que nos encontramos."
O silêncio voltou ao gabinete, mais pesado que nunca. Tomás manteve os olhos cravados no seu anfitrião, tentando digerir o verdadeiro significado do que acabara de escutar. Ele próprio, tomou consciência, não pertencia aos quadros e fora chamado pelo director.
"O professor convocou-me para... para me despedir?"
Incapaz de se suster perante a brutalidade da pergunta, o olhar de João Água baixou para o soalho de cerejeira do gabinete. O director engoliu em seco antes de reunir coragem para voltar a encarar o seu abismado interlocutor.
"Lamento muito, Tomás."
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IX
Um enorme e profundo vazio instalou-se na vida de Tomás.
Chegou nessa manhã a casa com a angústia a pesar-lhe no peito e deitou-se na cama ao abandono, sentindo-se invadido pelo mais absoluto dos despojamentos. Era como se tivesse sido declarado um inútil, um falhado, um pedaço de nada, reduzido à insignificância, humilhado, descartado como um trapo sem valor.
Derrotado.
Sim, a palavra que melhor definia o seu estado de alma era mesmo essa. Fora derrotado. Pela vida, pela universidade, pela crise.
Aquela maldita crise que desde 2008 vinha a ruminar, longínqua mas sempre a aproximar-se com insidiosa malícia, até o atingir com a força de um murro no estômago. Um murro não, um pontapé. E que pontapé! Abalara-o de alto a baixo, atingira-o no seu âmago mais profundo, vergara-o com a simplicidade desconcertante de apenas três palavras.
"Lamento muito, Tomás."
A frase que lhe fora dita apenas uma hora antes ainda lhe reverberava na memória. O director dissera que lamentava muito. Lamentaria mesmo? Que idiota, aquele tipo! Como era fácil dizer a alguém que se lamentava uma coisa e depois passar à frente, adeus que eu tenho mais que fazer. O director lamentava, mas continuava no seu emprego, confortável, o salário assegurado, decerto de consciência tranquila; despedira um subordinado com palavras delicodoces e um ar compungido adequado, mas o mais provável era àquela hora já se ter esquecido do assunto e 78
estar entretido a apalpar as tetas da secretária.
Ele, Tomás, não esquecera. Fora ele afinal quem realmente ficara com o problema nas mãos, ou não fora? O problema do director resumira-se ao anúncio da decisão, o seu problema era viver com as respectivas consequências. Respirou fundo e esforçou-se por ir para além do ressentimento e da humilhação e perceber que o director se limitara a fazer o que tinha de fazer. Não fora pessoal, pensou repetidamente. Não fora pessoal.
"Não foi pessoal uma ova!", murmurou com fúria mal contida, vertendo em palavras os pensamentos que lhe fervilhavam na mente.
"Não foi pessoal para ele, cabrão!, mas foi bem pessoal para mim!"
Revirou-se na cama e esforçou-se por pensar noutra coisa. Como se sentia só! Lembrou-se da filha e da mulher de quem se separara e sentiu uma enorme saudade delas, uma saudade tão grande que lhe fez doer o corpo e lhe roubou o ar nos pulmões. Ah, como se sentia só e como daria tudo para refazer a sua vida com as que perdera. Mas a realidade era aquela e não outra. Aprendera no Tibete que a vida era mudança e o sofrimento resultava da incapacidade de aceitar essa verdade cruel. A vida é mudança. Se queria sobreviver, se tencionava reerguer-se, se desejava uma segunda oportunidade, teria de interiorizar isso.
A vida é mudança.
O pensamento martelou-lhe a consciência e agarrou-se a ele como uma bóia de salvação. Se a vida era mudança, o que acabava de lhe acontecer não passava de um reflexo dessa realidade, decerto mais fácil de enunciar do que de aceitar. Mas teria de aceitar e viver com a realidade. A vida era mudança e a sua acabara de mudar.