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"Acho que me viram."

A informação arrancou um esgar intrigado ao amigo.

"Porque dizes isso?"

Hervé não largou a janela, varrendo a rua em busca de qualquer movimento suspeito que confirmasse os seus receios; precisava de ter a certeza de que não fora seguido.

"Dei com um homem na Prom a tirar fotografias na minha direcção. Quando se apercebeu de que o topei virou-se para o lado e disfarçou."

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"Que tipo de homem? Como estava vestido?"

"Era um gajo com calções brancos e um pólo azul do Yacht Club do Mónaco."

O amigo pôs as mãos na ilharga e inclinou a cabeça numa postura de repreensão.

"Ah, meu grande camelo!", exclamou num tom de repreensão paternal. "Andas mais nervoso que uma barata, hem? Zut alors, até um simples turista te põe a tremer de cagufa!" Fez uma careta de escárnio. "Não imaginava que vocês lá em Paris tinham medo dos turistas!..."

O parisiense desprendeu o olhar da cortina e voltou-se para o seu interlocutor.

"Escuta, Éric, o tipo estava a espiar-me!"

Éric sorriu sem humor.

"A sério? Um espião de calções e pólo do Yacht Club? Deixa cá ver... seria o zero zero oito? Porque não o Arsène Lupin?" Abanou a cabeça. "Deves estar a gozar comigo..."

"A roupa era um disfarce."

O sorriso do amigo transformou-se numa gargalhada.

"Tu sabes lá o que é um disfarce", exclamou Éric, passando os dedos pelos cabelos grisalhos. "Quando eu era estudante e enfrentei a polícia lá na Sorbonne, em Maio de 68, no tempo dos comunas e da Indochina e da Argélia e daquela loucura toda, aí é que havia espionagem a sério." Fez um gesto displicente para a janela. "O que tu viste, meu caro, não passou de um turista a fotografar a Prom ao anoi-tecer. Haverá coisa mais normal em Nice?" Virou as costas e dirigiu-se ao corredor. "Acho que este caso está a dar-te cabo dos nervos. Anda, vem daí e acalma-te."

Sentindo-se de repente ridículo, Hervé hesitou; talvez o amigo tivesse razão, o caso estava de facto a torná-lo paranóico. "Achas mesmo que era um turista?"

Éric nem olhou para trás.

10

"Vamos, anda daí", insistiu num tom paternal. "Temos muito trabalho pela frente."

A descontracção do parceiro deixou Hervé desconcertado.

Momentos antes teria jurado pela saúde dos seus filhos que o homem dos calções o estava a vigiar, mas agora já não se sentia assim tão certo. No fim de contas talvez Éric tivesse razão, o homem dos calções não passava provavelmente de um turista encantado com a Promenade des Anglais, e ele, sentindo-se acossado e nervoso com o trabalho que andavam a fazer, vira uma ameaça onde ela não existia. Que tolo!

Ainda pensou em espreitar uma última vez pela janela, mas concluiu que tudo aquilo era de facto uma completa idiotice e, vencendo a hesitação, meteu pelo corredor do apartamento e foi no encalço de Éric; havia realmente muito trabalho pela frente.

Fez mal, porque se tivesse seguido o seu instinto e olhado de novo para a rua provavelmente teria visto o homem dos calções e pólo azul do Yacht Club do Mónaco plantado na esquina a inspeccionar o edifício.

Além disso, o que era igualmente importante, teria percebido que o desconhecido não viera sozinho.

Os ecrãs dos portáteis estavam iluminados e enchiam-se de folhas de cálculo repletas de algarismos. Já estava na hora de jantar, mas Hervé e Éric encontravam-se de tal modo embrenhados na tarefa que tinham em mãos que nem deram pela passagem do tempo nem pelos protestos mudos dos seus estômagos; tudo o que parecia interessar-lhes eram os dígitos que enchiam os painéis dos computadores portáteis.

"Olha para isto", observou Éric, rompendo o mutismo para indicar um dos números registados no ecrã. "Não admira que tenhamos chegado onde chegámos!..."

O parisiense esticou o pescoço para o lado e espreitou o painel do portátil vizinho.

11

"Típico, hem?"

Voltaram a mergulhar nos números e o silêncio regressou ao apartamento,

apenas

rasgado

pelo

zumbido

manso

dos

computadores e pelo ocasional dedilhar nervoso do teclado. O

trabalho que estavam a desenvolver, talvez o mais importante em que alguma vez se tinham envolvido na sua vida profissional, requeria minúcia, grande concentração e muito empenho, e mostravam-se determinados a levá-lo até ao fim.

Um ruído metálico.

Hervé e Éric endireitaram as costas e altearam a cabeça, subitamente em alerta. Que barulho era aquele? Ouviram um som indefinido e compreenderam que vinha do corredor. Primeiro com espanto, depois com horror, perceberam que alguém tentava nesse momento inserir uma chave ou um outro objecto metálico, talvez um arame, na fechadura da porta do apartamento.

"Que é isto?"

Puseram-se de pé num salto, atarantados, e hesitaram. Era evidente que alguém tentava entrar no apartamento, mas quem?

Pensaram em várias possibilidades mas depressa as puseram de lado.

Ninguém sabia que eles se haviam escondido ali para levar a cabo o trabalho. Consequentemente, quem estava nesse instante a tentar abrir a porta, fosse lá quem fosse, não vinha com boas intenções. Que fazer?

Deveriam enfrentar os intrusos?

Mas enfrentá-los como? Eles não eram guerreiros nem sabiam lutar, a resistência física parecia-lhes coisa de homens primitivos. Não seria melhor fugir? Deram alguns passos numa direcção e depois noutra, como galinhas tontas, sem saberem como reagir.

O barulho de um metal a rodar no interior da fechadura tornou-

-se mais forte. Tomando por fim consciência de que não tinham meios nem capacidade para resistir, Hervé desviou a atenção para a cozinha, ao fundo da qual havia uma porta que dava para as escadas de 12

emergência. Agarrou Éric pelo braço e puxou-o com força.

"Vamos!", exclamou. "Depressa!"

Correram para a cozinha e abriram a porta do fundo. No momento em que Hervé pôs o pé no degrau da escada metálica escutaram um clique proveniente do corredor e perceberam que a fechadura estava prestes a ceder.

"Despacha-te!", gritou Éric, a voz impregnada de pânico. "Eles vêem aí!"

Hervé sentiu-se de tal modo tomado pelo medo que quase teve vontade de se atirar lá para baixo. Mas estavam no segundo andar e dominou o impulso suicida. Saltou dois degraus, depois três e mais três, as escadas metálicas a tremerem e a rangerem e a balouçarem, mas deteve-se a meio do primeiro lanço quando viu o caminho cortado por dois homens que o encaravam lá de baixo com uma expressão ameaçadora.

"Para trás!", disse. "Para trás!"

"Estás doido?", espantou-se Éric dois degraus acima, sem compreender o comportamento do amigo. "Continua! Continua!"

Mas o parisiense já recuava e, fazendo um gesto para o fundo das escadas, apontou para os homens que entretanto haviam começado a trepar os degraus em sua perseguição.

"Eles estão ali!"

Éric olhou naquela direcção e vislumbrou os vultos a aproximarem-se. Percebeu nesse instante o problema, pelo que estacou e recuou também. Os dois subiram a escada com a convicção de que a sua única esperança era a fechadura da porta do apartamento resistir ainda aos intrusos, o que lhes daria a possibilidade de se armarem com as facas de cozinha e, se ainda tivessem tempo, telefonarem a pedir ajuda.