"Isso parece-me familiar..."
"Vejo que é observador. Os evangelistas cristãos inspiraram-se obviamente nesta lenda para falar no nascimento de Jesus numa gruta e na estrela de Belém", explicou. "Depois veio Zoroastro, um ser humano com ligação a Deus e que impôs o monoteísmo. O seu verdadeiro nome seria Zarosht Spitama, igualmente conhecido por Zaratustra, e parece que era um zaotar, ou sacrificador. Ou seja, um mago, uma casta clerical que naquele tempo existia na Pérsia."
"Mago, hem? Também isso me parece familiar."
"Com certeza. O conceito dos três reis magos que seguiram a estrela de Belém é outra evidente influência zoroastriana nos evangelhos cristãos. Acontece que Zoroastro estabeleceu que só existe um Deus, Ahura Mazda, literalmente o Senhor Sábio, o Criador do Céu e da Terra, o juiz supremo, mestre da matéria e do espírito, único, omnipotente e omnisciente. Foi a primeira vez na história da humanidade que uma religião apresentou o conceito inovador de que existe um único Deus.
Toda a doutrina do zoroastrismo se encontra exposta nas suas escrituras sagradas, os Avestá, um conjunto de textos redigidos ao longo de centenas de anos e que inclui os Gathas."
O professor Markopoulou fez um gesto na direcção do rolo que o seu colega português estudava.
"Isso são os Gathas?"
"Um trecho dos Gathas."
"E diz-me que fala sobre o... o Diabo?"
Tomás voltou a aproximar a lâmpada do rolo. Ao deslocar-se, a luz fez mover as sombras e criou um efeito surreal, como se a própria cave estivesse assombrada e os fantasmas deslizassem pelo ar bafiento.
"Os Gathas revelam que Deus, ou Ahura Mazda, é pai de várias entidades, incluindo dois irmãos gémeos a quem deu a liberdade de 23
escolher entre o bem e o mal. Um deles, Spenta Manyu, ou Espírito Santo, preferiu o bem e a vida. O outro, Angra Manyu, também conhecido por Ahriman, optou pelo mal e pela morte. Os discípulos de Ahriman são os dregvant, ou seguidores da mentira, e os druj, enganados pela mentira."
O arqueólogo arregalou os olhos.
"Esse Ahriman é... é..."
"O Diabo, sim", assentiu o historiador com o brilho da lâmpada a cintilar-lhe no olhar verde. "Foi a primeira vez que um texto religioso mencionou a existência do Príncipe das Trevas." Tocou com o indicador no manuscrito. "É justamente este texto." Afastou a cabeça e contemplou as linhas grafadas à mão no rolo como se as admirasse. "Percebe então a sua importância?"
O académico grego engoliu em seco, intimidado com o poder surdo, maligno até, que aquele alfabeto enigmático parecia encerrar.
"Sim."
O historiador português assinalou uma linha do pergaminho com a ponta do indicador, como se quisesse reforçar a ideia.
"Este trecho, meu caro, descreve o nascimento do Diabo."
O silêncio na cave do Museu Arqueológico de Atenas prolongou-
-se por mais de uma hora; apenas se ouvia o lápis de Tomás a rabiscar no bloco de notas e ocasionalmente o velho manuscrito ser desenrolado para desvendar mais texto. Ao lado do seu convidado, a respiração o mais leve possível para não despertar o Senhor dos Infernos evocado por aquele texto milenar, o professor Markopoulou permanecia no mais profundo mutismo enquanto mirava com temor reverente as estranhas letras que a lâmpada iluminava com o seu clarão amarelado.
Ao chegar ao fim do rolo de pergaminho, e depois dos derradeiros apontamentos, o historiador português fechou o bloco de 24
notas e encarou o anfitrião.
"Disse o professor que este manuscrito foi encontrado numa câmara escondida por baixo das ruínas da Biblioteca de Pantainos?"
"Correcto."
"Era o único manuscrito que lá existia ou havia mais?"
O professor Markopoulou hesitou.
"Era o único... acho."
A última palavra fez Tomás semicerrar os olhos.
"Acha?"
O grego ficou momentaneamente atrapalhado.
"Quer dizer, pareceu-me ser a única coisa que havia por ali. Mas admito que... enfim, a câmara era muito sombria e talvez não a tenha explorado com todo o rigor. Pode ser que haja mais qualquer coisa, não digo que não."
Tomás endireitou-se e voltou-se para se livrar de uma dor que aparecera após tanto tempo curvado na mesma posição. Depois fez um gesto com a mão, como se o chamasse.
"Vamos andando", disse. "Ainda há trabalho para fazer."
O arqueólogo olhou-o com admiração.
"Onde quer o senhor ir?"
"Às escavações, claro. Temos de verificar se há lá mais alguma coisa."
Os dois académicos arrumaram o rolo numa estante climatizada da cave que o professor Markopoulou fechou à chave. Depois encaminharam-se para as escadas e dirigiram-se ao piso térreo do museu.
"De que está o professor verdadeiramente à procura?"
"Os Avestá são escrituras muito antigas", explicou Tomás. "Temos alguns dos seus livros, como o Gathas, o Vendidad, o Dinkard, o Shah-Nama, o Zardusht-Nama, o Yasht, o Visparat e outros. Por exemplo, o Vendidad, denominação do livro também intitulado Lei contra os Demónios, mostra o Diabo a incitar Zoroastro a renunciar à sua fé em 25
Deus seis séculos antes de Satanás fazer o mesmo a Jesus no deserto."
"Está a insinuar que o episódio evangélico da tentação de Jesus no deserto é inspirado nos textos zoroastrianos?"
"É evidente", assentiu o historiador. "O zoroastrismo é muito importante para compreender certos mitos do cristianismo e das outras religiões assentes na Bíblia. Foi aqui que se introduziram conceitos fundamentais como o livre arbítrio e a responsabilidade individual, o Deus único, o mito do Salvador da humanidade, a figura do Diabo, a luta entre o bem e o mal, o fim dos tempos, o julgamento final e a ressurreição dos corpos, ideias que iriam influenciar as restantes religiões e moldar o mundo como ele é hoje."
Chegaram ao piso térreo e, após cruzarem uma porta de serviço, entraram nas galerias abertas ao público e passaram pela colecção Karapanos e pelo Jardim das Esculturas em direcção à saída. Havia turistas por toda a parte e falavam-se várias línguas, sobretudo alemão, o que pareceu incomodar o arqueólogo.
"Porra de nazis!", vociferou o professor Markopoulou numa voz subitamente tensa. "Porque não vão para a terra deles?"
A agressividade e o tom xenófobo da observação foram tão inesperados, sobretudo porque saíam totalmente fora do contexto da conversa, que apanharam Tomas de surpresa.
"Porque? Qual é o problema?"
O académico grego indicou com o polegar um magote de turistas que admiravam a máscara de Agamémnon, a figura mortuária de ouro que constituía uma das principais atracções do Museu Arqueológico, enquanto um guia lhes dava explicações em alemão.
"Esses cabrões andam a infernizar-nos a vida", afirmou o arqueólogo com um semblante pesado. Abanou a cabeça como se quisesse desanuviar e respirou fundo. "Enfim, ignoremo-los." Voltou-se para Tomas e procurou concentrar-se, num esforço para retomar o fio da conversa. "Diga-me, professor, o que espera encontrar de especial na câmara onde descobrimos o 26
manuscrito?"
0 incidente desagradou a Tomas, mas optou por não fazer comentários e por se limitar ao assunto que o trouxera a Atenas.
"Os livros perdidos dos Avestá."
"Está a falar de que?"
"Sabe, alguns dos livros das escrituras zoroastrianas não chegaram até nós", explicou. "Quando os muculmanos invadiram a Persia, no século VII, levaram a cabo um genocídio cultural do zoroastrismo. Saquearam templos, queimaram escrituras, massacraram fiéis. 0 cânone dos Avestá é composto por vinte e um livros, mas a maior parte desapareceu. Só conseguimos recuperar um quarto dos textos originais. Por exemplo, sabemos através de documentos em pahlavi que havia escritos apocalípticos que falavam sobre o fim dos dias e uma grande guerra, no final da qual o Céu enviará um grande Deus que destruirá o mal pelo fogo e pela espada."