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palavras de ordem a erguerem-se num coro mais ou menos disciplinado. O professor Markopoulou fundira-se na multidão e berrava a plenos pulmões, o que não deixava de suscitar admiração no seu colega português. Como era possível um académico deixar-se arrastar daquela maneira pelas emoções contestatárias? Tomás observava tudo com distanciamento, estava dentro da manifestação mas era como se estivesse fora dela; analisava o protesto como se não passasse de um sociólogo a fazer um estudo sobre a psicologia comportamental das multidões.

A certa altura o professor Markopoulou calou-se, talvez já fatigado de tanto gritar, e o português aproveitou a oportunidade para o interpelar.

"Então?", perguntou. "0 que estão vocês a dizer?"

O arqueólogo levantou o dedo, assinalando assim uma palavra de ordem que estava nesse momento a ser entoada.

"Os ricos que paguem a crise!", traduziu. Esperou pela palavra de ordem seguinte. "Abaixo os especuladores!" Mais uma pausa.

"FMI, rua! Governo, rua! O poder está na rua!"

A atenção de Tomás fixou-se numa bandeira vermelha com a foice e o martelo.

"Isto é uma manifestação comunista?"

O grego abanou a cabeça.

"O KKE apoia, claro. Mas a manifestação foi convocada pela GSEE, a Confederação Geral dos Trabalhadores Gregos."

O professor Markopoulou regressou às palavras de ordem com vigor renovado e Tomás calou-se, na esperança de que se cansasse em breve e saíssem enfim dali para retomar a investigação. Achava que era muito importante verificar se havia mais manuscritos na câmara onde fora detectado o documento que lera no Museu Arqueológico e sentia-se levemente irritado com o activismo político do colega, que lhe parecia deslocado para quem tinha responsabilidades académicas.

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Quando a sua mente divagava já sobre a possibilidade de vir a encontrar alguns dos livros perdidos dos Avestá, e em particular o Spend Nask, que lhe daria acesso a uma mina de informação biográfica desconhecida sobre Zoroastro, a sua atenção desviou-se quase inadvertidamente para um grupo de homens que avançava como uma corrente forte no meio da manifestação.

As máscaras que lhes cobriam o rosto pareceram-lhe estranhas e levou algum tempo a reconhecê-las; eram dispositivos antigás, com tubos a saírem da zona da boca como focinhos de porcos. As máscaras encontravam-se já devidamente encaixadas nos rostos e os homens transportavam nas mãos tacos de madeira e garrafas de cerveja e Coca-Cola com panos molhados a espreitarem dos gargalos; delas saía um forte odor a gasolina. A certa altura foram desfraldadas bandeiras alemãs e os recém-chegados acocoraram-se junto à berma.

Enquanto uns se puseram a arrancar pedras da calçada, outros acendiam os isqueiros e colavam as chamas violáceas aos panos inseridos nos gargalos das garrafas. Depois ergueram-se como se obedecessem a uma só voz. Alguns apontaram os isqueiros às bandeiras alemãs e incendiaram-nas perante a euforia aprovadora da multidão, mas o clamor mudou de tom quando outros manifestantes começaram a atirar as pedras contra as vitrinas das lojas e a lançar as garrafas em fogo na direcção da sucursal de um banco.

"Cuidado!", gritou Tomás, puxando o professor Markopoulou pelo braço. "Já viu o que aqueles tipos estão a fazer?"

Uma vozearia assustada ergueu-se da multidão e os manifestantes começaram a correr em várias direcções. As labaredas alastraram rapidamente pela fachada do banco e pelo interior; algumas pessoas apanhadas nas instalações atravessaram em corrida a barreira de fogo para a rua, mas atrás delas ouviam-se gritos de aflição.

"Está gente lá dentro!", constatou o arqueólogo grego. "Meu Deus, eles não conseguem sair!"

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Tomás observava a cena embasbacado, vendo e sem acreditar.

A cena adquiria tons de irrealidade, parecia que a rua era uma plateia e a fachada incandescente a tela; só assim se explicava a incrível impunidade com que o grupo de manifestantes mascarados lançara cocktails Molotov contra o edifício e provocara um incêndio daquela magnitude. Eram decerto actores a interpretar uma cena, não podia ser outra coisa.

As palavras do professor Markopoulou e os gritos que vinham do interior do banco, no entanto, funcionaram como uma estalada que o trouxe de volta à realidade; aquilo não era cinema, estava mesmo a acontecer. Ao aceitar como verdadeiro o que testemunhava e ao aperceber-se de que havia gente encurralada no edifício em chamas, sentiu-se por fim impulsionado para a acção.

"Vamos''

O corpo pôs-se em movimento quase sem precisar de autorização da cabeça, como se o coração tivesse contornado a razão. Aproximou-se de um dos manifestantes que atirara cocktails Molotov e desferiu-lhe um violento murro nos rins que o deixou momentaneamente knockout.

O homem caiu de joelhos e rebolou pelo chão com dores. Com um gesto rápido, Tomás arrancou-lhe a máscara antigás e assentou-a na sua própria face.

"O que diabo está a fazer?", admirou-se o professor Markopoulou, estarrecido com a acção do colega português. "Está maluco ou quê?"

Ignorando o arqueólogo, o historiador arrancou o casaco do manifestante que se contorcia por terra e pegou nele como se fosse um escudo. Inspirou fundo, os olhos fixados na entrada do edifício em chamas, e recuou num passo para ganhar balanço.

"Não faça isso!", insistiu o grego, interpondo-se no caminho para evitar o pior. "É uma loucura! Ainda vai morrer!"

Enchendo-se de coragem, ou talvez dominado pela mais completa 34

inconsciência, Tomás Noronha tomou a decisão final. Contornou o colega como se ele não passasse de um objecto e desatou a correr, o casaco à frente para sofrer o primeiro impacto das chamas assassinas, os olhos fixos nas labaredas que projectavam braços como um polvo ameaçador, até que se atirou para a fornalha incandescente e mergulhou no archote gigantesco em que se tinha transformado a sucursal do banco.

O professor Markopoulou não queria acreditar no que via. O

seu convidado, o homem que viera à Grécia a seu pedido e que tinha a responsabilidade de proteger, atirara-se para o inferno.

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III

A primeira coisa que Tomás sentiu quando se lançou no fogo foi uma vaga de calor que o envolveu num bafo cruel. Pensou que ia morrer e arrependeu-se da sua loucura, amaldiçoou até o seu impulso de bom samaritano, mas num abrir e fechar de olhos aterrou numa sala envolvida em fumo e as chamas deixaram de o queimar.

As nuvens de fuligem no interior do edifício eram tão espessas que lhe dificultavam a visão, como se estivesse mergulhado num nevoeiro denso, mas apercebeu-se de formas difusas diante dele e dirigiu-se a elas. As formas ganharam consistência e deparou-se com uma mulher abraçada a uma criança de uns três anos, ambas deitadas no chão com dificuldade em respirar. Ainda pensou em entregar-lhes a sua máscara, mas reconsiderou; elas não estavam em condição de se ajudar a si mesmas e, se ele inalasse os fumos, também perderia o discernimento e os três ficariam perdidos. A única maneira era retirá-las dali.