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expressão cúmplice. "O problema é que estava tudo cheio." Esboçou com os braços um gesto de resignação. "Lá em Atocha disseram-me que, ou ficava com estes lugares, ou nem sequer entrávamos no comboio.

Não tive outro remédio."

A espanhola correu o interior da composição com o olhar; de facto o comboio ia apinhado de gente. A maior parte eram jovens com mochilas e sacos-cama, provavelmente a fazerem o InterRail, mas viam-se também algumas famílias e adultos solitários ou em pares. Havia até duas freiras nos bancos ao lado, com toda a probabilidade a caminho de Roma; tinham guardado nas prateleiras sobre os assentos um saco mal fechado com hábitos brancos a espreitarem do interior.

O tédio arrancou a Raquel um suspiro enfadado. Aborrecida, virou-se para a janela; lá fora estava tudo negro, não havia hipótese de ver fosse o que fosse a não ser alguns pontos luminosos, decerto barcos a cruzarem o mar.

"Convinha preparares-me para o que se vai passar em Florença", acabou ela por dizer. "Seria útil estar dentro de todo o dossiê, não achas?"

"O que queres tu saber?"

Era o que Raquel pretendia ouvir. Sem perder tempo, endireitou-se no lugar e olhou-o com intensidade.

"O euro vai ou não acabar?", perguntou de chofre. "Vamos ou não sair da moeda única? Afinal o que irá acontecer? Esta tarde falaste que te desunhaste, mas não respondeste a estas perguntas..."

Foi a vez de Tomás se ajeitar no assento; o que ela desejava saber não eram coisas de somenos.

"Estás a levantar questões diferentes", constatou. "Com-plementares, é verdade, embora diferentes."

"Sim, mas qual é a resposta?"

O historiador cruzou a perna e pôs-se à vontade.

"O euro irá acabar?", perguntou em tom retórico. "A crer na 341

história, sim. Todas as uniões monetárias criadas no passado sem estarem assentes num estado centralizado fracassaram." Fez com a mão um gesto peremptório. "Todas."

Não era a resposta que Raquel queria ouvir. A espanhola cerrou os dentes e cravou os olhos no companheiro de viagem.

"Esquece o passado", disse. "O euro é diferente de tudo o que foi criado até agora, não é verdade? Se a sua arquitectura for sólida, o que impede a moeda única de ser bem-sucedida?"

"O problema é que a arquitectura não é sólida. Todos os estudos mostram que as áreas monetárias de sucesso têm em comum vários factores determinantes: a mobilidade da força laborai, a flexibilidade de preços e salários, taxas semelhantes de inflação, abertura e diversificação das economias individuais, integração financeira, integração orçamental e integração política. Quando um ou mais destes elementos falha, a estrutura do edifício começa a ceder."

"Bueno... realmente falta-nos um ou outro desses elementos..."

Tomás soltou uma gargalhada.

"Um ou outro? Falta-nos metade, Raquel! Metade! Sabes qual é a mobilidade da força laborai na zona euro? Zero vírgula um por cento! Ou seja, nada. Enquanto nos Estados Unidos um choque económico regional é absorvido pela transferência de trabalhadores para outras regiões do país onde a situação é melhor, na zona euro um choque num país não provoca mobilidade laborai para outro, mas desemprego. E ai do governante que se atreva a sugerir mobilidade da força laborai, é logo acusado de querer desertificar o país! Por outro lado, a flexibilidade de preços e de salários é inexistente na zona euro e o mesmo se pode dizer da integração orçamental e da integração política. Enquanto a América tem uma moeda que coincide com um único estado nacional e a sua população fala uma língua comum e goza de uma cultura partilhada, a zona euro não dispõe de nada disso. Os Americanos usam transferências orçamentais para corrigir desequilíbrios, de tal maneira que Nova Iorque paga para ajudar o Oregon, 342

por exemplo. As transferências internas americanas eliminam quarenta por cento do declínio nos rendimentos regionais. Na zona do escudo português, Lisboa pagava para ajudar o Alentejo c, na zona da peseta espanhola, Madrid pagava para auxiliar a Andaluzia. Na zona euro, contudo, nada disso é possível. Se Berlim aceitar pagar para ajudar a Grécia, terá de enfrentar uma rebelião do Bild Zeitung e da população alemã. As pessoas não são solidárias na zona euro porque não têm um sentimento nacional, alimentado por uma língua e uma cultura comuns. Os Alemães estiveram dispostos a ajudar Dresden na reunificação alemã, mas não aceitam ajudar Atenas na unificação europeia."

Raquel baixou a cabeça, esmagada pela evidência. "Pois, tudo isso é verdade."

"Por isso, e a crer em todos os estudos sobre áreas monetárias, o destino do euro está traçado. A moeda única como a conhecemos vai acabar."

A espanhola lançou-lhe um olhar de súplica, quase como se fosse ele o detentor do poder de resolver as insanáveis contradições do euro.

"Mas, Tomás, não haverá uma única hipótese de o euro se aguentar?

Nem uma única?"

O historiador respirou fundo. A responsabilidade que Raquel lhe atribuía, de salvar o euro, era muito maior do que os seus ombros podiam suportar.

"Está a ser feito uni esforço nesse sentido", acabou por dizer. "O

caminho é estreito, e, se tudo for bem executado, o euro sobreviverá. Mas não sei se há estômago para fazer o que tem de ser feito."

O rosto da espanhola contraiu-se numa careta. "O que é preciso fazer?"

"A crise da dívida apanhou a zona euro numa terra-de-ninguém onde ela não pode continuar. Os países têm uma moeda comum mas não partilham um orçamento comum, não respeitam as regras financeiras que eles próprios acordaram nem têm uma governação 343

política centralizada. É uma receita para o fracasso. Os Alemães já perceberam isto e estão a tentar dar um passo em frente: estabelecer penalizações para quem viole as regras financeiras e impor que os orçamentos nacionais requeiram luz verde de Bruxelas para ser aprovados, de modo a criar assim um esboço de orçamento comum.

O curioso é que os países do Club Med, que se afirmam empenhados na sobrevivência do euro, estão a resistir a estas medidas destinadas justamente a salvar o euro. Um contra-senso total."

"E com razão", contrapôs a espanhola. "O orçamento de Espanha tem de receber autorização de Bruxelas? Mas afinal quem manda no meu país? Os Alemães?"

Tomás riu-se.

"Esse é justamente o problema", observou. "Os países do euro querem o euro mas não querem as medidas que viabilizam o euro!

Todos os estudos mostram que uma moeda só funciona num estado com poder centralizado em que haja unidade financeira, orçamental e política. Se os países não estão dispostos a ceder soberania nesses três pontos, o euro não é possível! Ponto final. Entendes isso?"

"Não é possível como? O euro tem sido possível até agora!..."

"Porque até agora os tempos eram bons, já te disse! O teste a uma moeda faz-se nos tempos maus, não quando tudo corre de feição. Acontece que estamos justamente a viver tempos maus e, surpresa! surpresa!, as contradições emergiram e o euro não está a resistir. Temos de fazer uma escolha. Ou damos um passo em frente ou voltamos para onde estávamos antes do euro. Nesta terra-de-ninguém é que não podemos continuar!"

Raquel suspirou, resignada.

"Muy bien, suponhamos que damos mesmo o passo em frente e perdemos mais soberania. O euro salva-se?" O português torceu os lábios.