"Mesmo assim, não sei. Abriu-se uma fenda na zona euro entre 344
países credores e países devedores. Há sobretudo dois problemas suplementares que será necessário resolver. Em qualquer espaço monetário a periferia perde poder para o centro, mas tem de obter algo em troca: transferências orçamentais. É isso que acontece na América e em qualquer país que tenha uma moeda. Nova Iorque transfere dinheiro para o Oregon, Londres para o Sussex. Para que a zona euro seja viável, os Alemães terão de dar um salto mental e aceitar retomar transferências para a periferia de modo a compensá-la pela perda de poder. Será que darão esse salto?"
"Tenho dúvidas..."
"Se não derem, é um problema sério. O segundo problema não é económico, mas político. Relaciona-se com a legitimidade democrática dos decisores. O euro é sobretudo um projecto político. Foi criado para atar a Alemanha e assegurar a paz na Europa, certo?"
"Claro, já explicaste isso. O euro garante a paz."
"Se assim é, por que razão andam a queimar bandeiras alemãs em Atenas? A troca de insultos entre Alemães e Gregos é uma coisa muito grave e mostra, para quem tivesse dúvidas, que o euro não está a ser o garante da paz, mas uma vulnerabilidade que provoca ameaça de guerra. Este problema é muito sério e tem de ser resolvido para que a moeda única não fracasse. O nó górdio encontra-se na legitimidade dos decisores. Como é possível numa democracia que um poder governe pessoas sem que elas tenham oportunidade de votar nele? Ou seja, com a transferência de poderes para o centro, o que se passa é que os governantes alemães começam a governar de facto os Portugueses sem que os Portugueses tenham tido uma palavra a dizer na eleição desses governantes alemães. Isso não pode ser. Será preciso que toda a população da zona euro tenha oportunidade de votar em quem de facto a governará. Isto significa que a zona euro terá de se tornar uma federação e qualquer político europeu se poderá candidatar a seu líder executivo, fazendo 345
campanha na Alemanha, em França, Portugal e na Itália da mesma maneira que os candidatos a presidente dos Estados Unidos fazem campanha na Florida, no Connecticut, no Ohio e no Texas."
Raquel mergulhou os dedos no cabelo e massajou o couro cabeludo.
"Tudo isso é muito complexo", desabafou. "Achas que só nessas condições o euro será viável?"
"Não vejo outra maneira. Se não se lidar com estes problemas todos, o euro entrará em colapso de um momento para o outro.
Pode levar anos ou pode ser já amanhã, mas acabará por cair ou por se fracturar. As contradições têm de ser resolvidas."
"Imaginemos que as debilidades são desfeitas e o euro sobrevive", sugeriu a agente da Interpol. "Os problemas de Espanha e de Portugal e de toda a periferia são superados?"
O historiador cruzou os braços e, inclinando a cabeça para o lado, fitou um longo momento a sua interlocutora.
"A primeira coisa que tens de interiorizar é que não há milagres", disse. "Uma análise a mais de duzentas crises bancárias seguidas de crises da dívida permite-nos tirar algumas conclusões claras. Quando as taxas de juro de uma dívida gigantesca ficam maiores que a taxa de crescimento da economia, como está a acontecer no Club Med e noutros países, os empréstimos já não conseguem ser pagos. Nesses casos, as crises da dívida terminam com uma desvalorização da moeda ou dos custos de trabalho, ou com uni default. Independentemente do que os demagogos digam, qualquer destas soluções é dolorosa e envolve muita austeridade.
Não se conhece um único caso na história em que um desendividamento seja feito sem austeridade. Nem um."
"Portanto, a austeridade é inevitável."
"Infelizmente, sim. Repara, desde o aparecimento do euro e até à crise das dívidas soberanas, a Alemanha tornou-se trinta por cento mais produtiva que a Grécia. Quer isto dizer, e por incrível que 346
pareça, que produzir um bem na Grécia custa trinta por cento mais do que produzi-lo na Alemanha. O que é válido para a Grécia é válido para a generalidade do Club Med, embora com percentagens diferentes consoante os países. Para neutralizar a diferença em relação à Alemanha, e não podendo desvalorizar a moeda nem querendo avançar para o default, o Club Med terá de baixar significativamente os custos do trabalho, o que, receio bem, significa redução de salários. Como os salários descem, o consumo desce e as receitas fiscais também, o que provoca recessão e mais défice, obrigando a baixar ainda mais os salários, o que provoca nova queda do consumo e das receitas fiscais e assim sucessivamente."
"Mas desse modo entra-se num ciclo vicioso..."
"Pois é, mas qual a alternativa? O ajustamento, receio bem, é sempre doloroso e não há soluções boas." Ergueu a mão para sublinhar o ponto. "Vou repetir: não há soluções boas. Digam os demagogos o que disserem, lembra-te de que se chegou a um ponto em que não há soluções boas. A opção diante do Club Med e de todos os países excessivamente endividados são soluções muito más e soluções péssimas. Não existem milagres nem varinhas mágicas, todos os caminhos estão pejados de espinhos. O estudo de mais de duzentas crises bancárias seguidas de crises de dívida mostra que o ajustamento, qualquer que seja o caminho seguido, é sempre doloroso e o desendividamento nunca é feliz. Nunca. São sempre precisos vários anos para desendividar uma economia e o desemprego cresce em média durante quatro anos seguidos, enquanto o crescimento económico permanece anémico em média durante uns seis ou sete anos. Ao longo desse período há menos crédito disponível e o investimento privado é muito baixo."
"Portanto, os problemas de Portugal e de Espanha não desaparecerão em breve..."
"Com certeza que não."
"Nem se o Club Med sair da moeda única?"
A pergunta era importante, crucial mesmo, e Tomás levou um momento 347
a equacionar a melhor forma de lhe responder.
"Para determinar uma coisa dessas, temos de ler correctamente a situação", acabou ele por dizer. "Por exemplo, a economia portuguesa está muito desequilibrada porque andou sempre a importar muito mais do que a exportar. Para a reequilibrar é melhor estar no euro ou fora dele?"
Raquel estreitou as pálpebras, ponderando a resposta correcta.
"Estar no euro parece-me melhor", acabou por responder. "A moeda única funciona como uma fortaleza e protege-nos das tempestades."
"Ai sim? Então porque não protegeu?"
A espanhola hesitou.
"Quer dizer... de certo modo protegeu, não protegeu? Olha para o que aconteceu à Islândia. Os Islandeses foram imediatamente arrasados pela crise financeira e nós não. O mesmo sucedeu com os países bálticos."
"É verdade", assentiu o historiador. "Mas onde estão os Islandeses agora? A recuperar. Onde estão os bálticos agora? A recuperar. E onde estamos nós?"
A pergunta ficou a flutuar no ar, perversa e insinuante, fazendo o seu caminho na mente de Raquel.
"Achas que é melhor estar fora do euro?"
Tomás enlaçou as mãos, ganhando balanço para atacar o problema.
"Como sabes, os desequilíbrios que estamos a sofrer sempre existiram nas nossas economias", lembrou ele. "É frequente importarmos mais do que exportamos e volta e meia temos de corrigir essa situação. Se assim é, por que razão está esse processo agora a ser mais difícil? Qual a diferença em relação ao passado?"