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"O euro?"

"A diferença, minha linda, é que já não controlamos a nossa moeda", disse Tomás, respondendo à sua própria pergunta. "Repara, tal como as pessoas, os países não produzem tudo o que consomem.

Produzem umas coisas que vendem ao exterior e, com o dinheiro que ganham, compram o que não produzem. Sempre que as importações 348

excedem as exportações, qual é a solução? Baixar os custos dos nossos produtos para os tornar mais apetecíveis e assim venderem-se melhor. Mas como se baixam esses custos?"

"Baixando os salários, já o explicaste."

Tomás abriu as mãos, num gesto resignado.

"Infelizmente, assim é!", concedeu. "Há uma subtileza, no entanto, que tens de entender. Antigamente, quando tínhamos as nossas moedas, os salários baixavam-se através de mecanismos monetários: imprimíamos dinheiro e isso gerava inflação. Vamos imaginar que tínhamos uma inflação de trinta por cento. Os governos chegavam junto dos trabalhadores e diziam: eh pá, vocês estão cheios de sorte, vamos dar-vos quinze por cento de aumento!

Quinze por cento? Toda a gente ficava contente. Ena, que grande aumento! O que as pessoas se esqueciam é que a inflação era de trinta por cento, o que significava que os seus salários tinham na verdade diminuído quinze por cento. Com essa redução invisível dos salários, os nossos produtos ficavam mais baratos e vendiam-se melhor no estrangeiro. Por outro lado, ao imprimir dinheiro estávamos a desvalorizar a moeda, o que tornava os produtos estrangeiros mais caros e menos acessíveis. Diminuíam assim as importações."

"Pois, estou a ver", murmurou Raquel. "Mas já não temos uma moeda só nossa, pois não?"

O historiador esboçou uma expressão apreciativa.

"Estás a ver como chegas lá?", atirou. "É isso mesmo. Já não temos uma moeda só nossa. Temos o euro. E é justamente aí que radica o problema. Como já te expliquei, a análise de centenas de outras situações semelhantes no passado mostra que uma crise de dívida descontrolada se resolve de três formas: ou gerando inflação através da impressão de dinheiro, ou desvalorizando directamente os custos do trabalho ou fazendo default. Acontece que os Alemães querem estabilidade de preços e têm horror à inflação. Eles avisaram-nos 349

vezes sem conta que o euro seria uma moeda forte e não se poderia desvalorizar. Os nossos inteligentes governantes fizeram que sim com a cabeça, mas ignoraram os avisos e, como de costume, foram caçar votos com políticas despesistas." Esboçou com as mãos um gesto teatral.

"Agora que a coisa deu para o torto, levam as mãos à cabeça e dizem: ó tio, ó tio, acudam que não há dinheiro, a culpa é dos mercados e dos especuladores, a culpa é das agências de rating e do Goldman Sachs, a culpa é da troika, a culpa é da Alemanha e da gorda, a culpa é de todos excepto de mim, eu que sou muito competente e patriota, dei o meu melhor, dei cabo da sustentação do estado social e das finanças do meu país, fiz obras faraónicas e gastei o que não tinha para ajudar os construtores meus amigos, estourei milhões em auto-estradas para a Peidaleja e Ranholas de Cima e Alguidares de Baixo, fiz um aeroporto internacional em Beja que só recebe uni avião por semana, deixei os bancos emprestarem rios de dinheiro a pessoas que já não conseguem pagar o que devem, mas... oiçam, fiz tudo bem, hã?, a culpa é toda dos outros, eu não tenho nada a ver com isto!"

Raquel riu-se da interpretação do seu companheiro de viagem; já tinham ouvido aquele discurso em Espanha e suspeitava que em Portugal tinha decorrido a mesma conversa.

"Davas para actor", observou, zombeteira. "Qualquer dia ainda és contratado pelo Almodóvar."

"Almodóvar? No mínimo pelo Spielberg!" Fez um gesto no ar, como se visualizasse o letreiro de um cinema. "As Aventuras de Indiana Noronha na Terra da Bancarrota, estás a ver o género?"

Juntaram-se numa gargalhada ruidosa, atraindo os olhares reprovadores dos passageiros em redor. Reprimindo a galhofa, a espanhola respirou fundo e por fim recuperou a compostura.

"Agora a sério", disse. "Disseste que antigamente se enfrentava este problema com a desvalorização da moeda..."

"Exacto. Foi o que fez a Islândia, por exemplo. Tendo embarcado 350

na idiotice da desregulação financeira, os lslandeses foram brutalmente atingidos pela crise, desvalorizaram a sua moeda e já estão a recuperar. O mesmo aconteceu com os países bálticos."

"Então e nós? Se estamos no euro e não temos moeda nossa, o que podemos fazer? Entramos em default?"

"O default unilateral está a ser para já posto de lado para não hostilizar e alienar os Franceses e os Alemães, cujos bancos são os grandes credores do Club Med. Não podendo também desvalorizar a moeda, o que permitiria baixar os salários de uma forma invisível, mas querendo obter o mesmo efeito de desvalorização dos custos de produção, receio que tenhamos de cortar directamente os salários. Não há outra opção. Por outro lado, sem poder imprimir moeda nem erguer barreiras alfandegárias às importações, a única maneira de diminuir as compras ao exterior é retirar poder de compra aos nossos cidadãos. Sem dinheiro para gastar, eles não compram produtos importados e as importações caem."

Raquel fez um ar escandalizado.

"Retirar o poder de compra aos nossos cidadãos?", quase se indignou. "Mas isso também dá cabo da economia interna! As nossas empresas vão à falência! As pessoas passam a viver miseravelmente!"

"Tens toda a razão, é uma solução horrível, mas qual é a alternativa? Manter o poder de compra e continuar a aumentar as importações? Preservar os salários relativamente altos e manter assim o preço elevado dos nossos produtos, tornando-os pouco apelativos no mercado externo?"

A espanhola manteve a expressão escandalizada.

"Salários relativamente altos?", questionou. "Os nossos salários são uma miséria!"

"É verdade. O problema é que, mesmo sendo baixos, são três vezes mais altos que os salários dos Chineses, o que faz com que os nossos produtos sejam muito mais caros do que os produtos chineses.

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Como não temos barreiras que protejam as nossas economias desses produtos, as nossas empresas não conseguem competir com os Chineses e estão a fechar, espalhando o desemprego. Os nossos salários estão, em termos proporcionais, acima até dos salários dos Alemães."

"Dos Alemães? Estás doido? Ganhamos mais que os Alemães?"

"Por incrível que pareça, o custo dos salários em Portugal, Espanha, Irlanda, Grécia, Itália e França, na relação com o PIB de cada um destes países, era no início da crise dez a trinta por cento superior ao custo dos salários na Alemanha. As nossas economias não aguentam isso. Temos, pois, de escolher entre salários baixos e desemprego. Os salários baixos são, receio bem, o mal menor."

Raquel fez um ar atrapalhado.

"Bem... tem de haver outra maneira."

"Não controlando nós a nossa moeda e querendo evitar o default, receio bem que não haja outra forma. A desvalorização da moeda seria o instrumento mais fácil, porque baixaria os salários de forma indirecta e camuflada, mas no euro ela não é possível.