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"Speak English?", perguntou, encostando a máscara ao ouvido esquerdo da mulher. "Fala inglês?"

Ela lançou-lhe um olhar vago, quase indiferente. Se falava inglês, no estado em que se encontrava isso era irrelevante. Se as queria salvar, tomou consciência, teria de fazer tudo sozinho. Agarrou nas duas e levantou-as, mas sentiu os pulmões a arder com o esforço naquele ambiente quente e saturado de cinzas e pousou-as de novo; tornara-se 36

evidente que assim não conseguiria, apesar de estar protegido pela máscara antigás. A única maneira era tirar primeiro uma e depois voltar para salvar a outra. Se conseguisse voltar, claro. Olhou em redor. O fumo adensava-se a olhos vistos e a visibilidade tornara-se quase nula; estendendo o braço tinha dificuldade em ver a própria mão. Percebeu nesse instante que, além de ter de agir muito rapidamente porque a janela de oportunidade se fechava depressa, não disporia de possibilidade de voltar atrás para salvar a segunda pessoa. Tinha de optar, a mãe ou a filha. A responsabilidade e o poder de vida ou de morte deixaram-no momentaneamente paralisado; sentia-se na pele dos nazis que nos campos de extermínio decidiam quem ia para as câmaras de gás e para os campos de trabalho.

A mãe ou a criança? Como poderia escolher?

Esforçando-se por não pensar no que fazia, horrorizado com os remorsos que intuía haveriam de o consumir mais tarde, segurou a criança nas mãos e, com suavidade mas firmeza, arrancou-a dos braços enfraquecidos da mãe; apercebeu-se nesse instante de que se tratava de uma menina e já tinha perdido os sentidos, quem sabe se não estaria já morta. Valeria a pena arriscar com a menina naquelas condições? Não seria melhor salvar a mãe, que estava comprovadamente viva? Mas como viveria ele sabendo que podia ter deixado uma criança para trás sem ter a certeza de que estava morta?

Foi a derradeira indecisão. Apertou a menina contra o peito e ergueu-se para sair dali. Encaminhou-se às cegas em direcção à saída e, quando tacteava no meio do ar fumarento, deparou-se com uma sombra a formar-se diante dele tão de repente que embateu contra ela.

Era um homem.

Cambaleou, apanhado em contrapé pelo impacto, mas conseguiu reequilibrar-se e fitou o vulto que lhe aparecera à frente.

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Tinha uma máscara como a dele e vestia uma camisa e jeans iguais aos do professor Markopoulou.

"Ali!", gritou por baixo da máscara, apontando na direcção da mulher que deixara para trás. "Vá ali!"

A voz saiu-lhe abafada pela máscara e não teve a certeza de que o colega grego havia entendido o que dissera. Os seus gestos eram contudo de tal modo categóricos que o arqueólogo obedeceu e desapareceu na direcção indicada.

Tomás retomou a marcha e viu as labaredas lamberem as paredes diante dele. Procurou a porta e encontrou-a dois metros para o lado. Envolveu a menina no casaco que tirara ao manifestante e lançou-se naquela direcção, como um artista de circo a atirar-se para uma parede de chamas. Sentiu o ardor do fogo envolvê-lo outra vez num fôlego infernal e, quando deu por ele, estava na rua e o ar era de novo límpido e fresco.

Passaram-se três minutos e não havia ainda novidades do professor Markopoulou. Tomás tinha entregado a criança a uma mulher grega que interpelara no passeio, dando-lhe instruções para a levar de imediato para o hospital, e quase sem fôlego regressara para diante do edifício em chamas.

O fogo engolia já o segundo andar da sucursal do banco e o arqueólogo ainda não dera sinais de vida. O que fazer?

Dominado pela angústia, o historiador português sentiu que não podia nem conseguia esperar mais. Ajeitou a máscara no rosto e respirou fundo, ganhando coragem para se lançar de novo para o interior do edifício. O que se preparava para fazer parecia-lhe uma completa loucura, não via já hipóteses de sobreviver naquele braseiro descontrolado, a situação deteriorara-se muito para além do razoável.

Todavia, algo o impelia a atirar-se mais uma vez para o mar de chamas 38

e tentar o impossível.

Pensou nesse instante na sua própria mãe e hesitou. Se morresse, como lhe parecia provável, quem cuidaria dela? Teria mesmo o direito de pôr assim a vida em risco quando alguém dependia tanto dele? Não fizera já mais do que dele se poderia esperar naquelas circunstâncias? Atirar-se assim para aquela barreira de fogo parecia-lhe puro e simples suicídio e reconsiderou as suas intenções. Mas a angústia corroía-o, tal como o sentido de responsabilidade. Fora ele quem, de forma indirecta, arrastara o colega grego para o interior do edifício e o encorajara a internar-se ainda mais para resgatar a mulher; sentia o dever de ir lá dentro buscá-lo.

Foi nesse momento que viu o vulto cortar o fogo e cambalear para a rua. A figura rolou pelo passeio e separou-se em duas, um homem e uma mulher. Era o professor Markopoulou e a mãe da menina. Tinham chamas a morder-lhes as roupas e Tomás precipitou-se sobre eles. Com o casaco que antes lhe servira de escudo agrediu as labaredas e conseguiu abafá-las. Alguns gregos vieram também acudir e começaram a dar assistência à vítima. Um deles, evidentemente alguém com conhecimentos de medicina, debruçou-se sobre a mulher e fez-lhe respiração boca a boca para tentar reanimá-la.

Tomás desinteressou-se dela, era evidente que estava em mãos competentes, e foi ajudar o professor Markopoulou. O arqueólogo permanecia deitado no chão, de barriga para o ar e a arquejar, a máscara ainda pregada à cara. O historiador português ajudou-o a levantar-se e, também ele ainda de máscara antigás, arrastou-o para o meio da rua de modo a afastá-lo do edifício que se transformara já num enorme archote incontrolável.

Ouviu nesse instante duas detonações, sentiu toda a gente de novo a correr em redor deles e apercebeu-se de uma nuvem de fumo a envolvê-los. Ainda tentou retirar a máscara, mas uma lufada de fumo 39

embrulhou-lhe a cara, queimou-lhe os pulmões e incendiou-lhe os olhos.

"Gás lacrimogéneo", balbuciou o professor Markopoulou, a voz abafada pela sua máscara. "Ponha a máscara!"

O português obedeceu e reajustou o dispositivo antigás diante do nariz e da boca. O efeito do gás lacrimogéneo desapareceu e foi então que percebeu por que motivo os homens dos cocktails Molotov haviam aparecido na manifestação de máscaras na cara; era para

se

protegerem

do

gás

lacrimogéneo

que

a

polícia

inevitavelmente atiraria sobre eles quando começassem a acção violenta.

Uma figura passou a correr ao lado deles e dois outros vultos surgiram de imediato. Tomás fitou-os e ficou por momentos desconcertado

com

o

que

viu;

traziam

grandes

escudos

rectangulares e capacetes com visores que lhes ocultavam o rosto.

Era a polícia de choque que acabava de chegar e limpava a rua de manifestantes. O historiador acolheu-os com alívio. Ele e o seu colega grego estavam enfim em segurança, pensou, mas depressa os acontecimentos contrariaram essa primeira sensação.

Ao verem ali dois civis de máscaras antigás, os polícias da força antimotim alçaram os cassetetes, ajustaram os escudos e, para horror de Tomás, carregaram.