"De avião não pode ser", lembrou Balam. "Precisariam de mostrar os documentos de identificação. Uma vez que estão referenciados pela polícia, sabem que seriam localizados se apanhassem um voo."
Magus fez um gesto impaciente.
"Claro que o avião está fora de questão, isso é óbvio." Soergueu o sobrolho. "Só vejo duas hipóteses: ou vêm à boleia ou de comboio. A boleia parece-me mais segura, mas tem o inconveniente de não garantir que estarão aqui a horas." Abriu as mãos como se expusesse uma evidência. "Portanto vêm de comboio."
O responsável da segurança assentiu com a cabeça. "Deverei vigiar a estação?"
Magus levantou-se do sofá e aproximou-se da janela para espreitar o Amo. O dia nascera sombrio, com uma neblina prateada a erguer-se lentamente do rio como vapor, e uma luz metálica rodeava a Ponte Vecchio e conferia-lhe um aspecto vagamente espectral.
Permaneceu vários segundos entre as cortinas a contemplar a paisagem e a tentar imbuir-se da serenidade que a cidade irradiava, consciente de que precisava de cabeça fria para enfrentar o que aí vinha; o dia seria longo e muita coisa se jogaria nas vinte e quatro horas seguintes.
Virou-se para trás e, com os olhos cruéis a reflectirem o gelo da decisão, 371
fitou o seu subordinado.
"Acaba com eles."
LVI
Havia já algum tempo que a costa mediterrânica ficara para trás, substituída pelos belos campos verdes e ondulados da Toscana, aqui florestas e ali vinhedos e olivais. De vez em quando cruzavam uma ponte medieval ou uma povoação pitoresca, mas a maior parte do tempo corriam entre o vale que se abria para abraçar a manhã soalheira.
Acomodada no seu assento, Raquel ignorava a paisagem deliciosa.
Tudo o que lhe interessava nesse momento era perceber o futuro, saber o que poderia esperar da crise, como preparar-se para ela, conhecer o destino do euro.
"Vamos imaginar que, após vários meses ou anos de agonia dentro do euro, um dia se chega à conclusão de que o teu país tem de abandonar a moeda única", sugeriu. "O que acontecerá então?"
Tomás ansiava por dedicar a sua atenção a outros assuntos que lhe 372
pareciam mais prementes. Sentiu que as pessoas na carruagem começavam a despertar, um burburinho crescente fervilhava no ar, mas constatou que as duas freiras ao lado ainda dormiam a sono solto.
Sabia, porém, que a sua interlocutora não o largaria enquanto não satisfizesse a sua curiosidade. Respirou fundo, resignado, e concentrou-se na resposta à pergunta que ela formulara.
"Mantenhamo-nos no exemplo de Portugal, embora tudo o que vou dizer seja válido para qualquer outro país", propôs. "A decisão de sair do euro é de tal modo sensível que não me parece possível mantê-la em segredo. Por isso, no dia em que for tomada terá de se proibir de imediato o levantamento de dinheiro nos bancos e as transacções financeiras, exceptuando pequenos valores para garantir a vida no dia-
-a-dia. Isto porque toda a gente perceberá que o escudo será desvalorizado e por isso as pessoas tentarão levantar os euros ou transferi-los para o estrangeiro, o que provocaria a fuga de capitais e a consequente falência em cadeia dos bancos. Isso não pode ser permitido.
Daí que, durante o tempo que levar a impressão de escudos, as transacções tenham de ser reduzidas ao mínimo."
"Será uma confusão."
"Com certeza, mas o pior não é isso", disse o historiador. "O
novo escudo sofrerá uma desvalorização de pelo menos cinquenta por cento, o que significa que as pessoas passam, de um dia para o outro, a ter metade do dinheiro que tinham. Os seus salários, as suas pensões, as suas poupanças... tudo isso passa a valer metade. Isto implica um colapso súbito do nível de vida. Em apenas vinte e quatro horas, tudo o que é importado duplica de preço: comida, roupa, medicamentos, combustíveis... tudo. Haverá por isso uma corrida aos supermercados, às lojas, às farmácias e às bombas de gasolina. É
possível até que ocorram tumultos e saques e que o exército tenha de intervir para proteger estabelecimentos comerciais e bancos."
"Dios mio!", exclamou Raquel, levando a mão à boca. "Não sei se 373
quero que a Espanha saia do euro..."
"As consequências imediatas serão duras", insistiu Tomás.
"Ninguém deve ter ilusões quanto a isso. E de um ponto de vista macroeconómico há ainda a considerar o problema das dívidas.
Mantenhamos Portugal como exemplo. O meu país contraiu a sua dívida em euros, pelo que terá de a pagar em euros. Acontece que, saindo do euro, o estado passa a cobrar os impostos em escudos, o que implica um colapso das receitas fiscais. Os efeitos são igualmente devastadores na dívida privada. A desvalorização do escudo implica que a dívida das famílias duplica de um dia para o outro. No dia 1 uma família deve duzentos mil euros ao banco, no dia 2 já deve oitenta mil contos, o equivalente hoje a quatrocentos mil euros. Isto é uma catástrofe! As pessoas, que já pagam com dificuldade as suas dívidas aos bancos, entrarão imediatamente em default, isto é, deixam de pagar o que devem. Como toda a gente entra em default ao mesmo tempo, os bancos ficam sem dinheiro e abrem falência. O país paralisa."
"Há uma maneira de dar a volta a isso", considerou a espanhola. "Se os euros passam a escudos, a dívida passa a escudos e ela própria acompanha a desvalorização dos escudos. Assim as pessoas mantêm o mesmo valor da dívida, só que em escudos."
"A escudização das dívidas é uma hipótese. O problema é que as dívidas dos bancos portugueses ao exterior continuam em euros, mas as receitas e os depósitos entram em escudos desvalorizados. Nestas condições, os bancos não conseguem pagar o que devem ao exterior e abrem falência. O país também paralisa."
Raquel pestanejou, desconcertada com os dois cenários. "Sendo assim, o resultado é sempre o mesmo!..."
"É por isso que se chama uma catástrofe."
A espanhola abriu os braços num gesto impotente e, desconcertada, sacudiu a cabeça.
"Quer dizer, isto é o cúmulo! Não podemos permanecer no euro nem 374
podemos sair! Estamos enfiados num verdadeiro colete-de-forças! Como fazemos então?"
Tomás passou as mãos pela franja.
"É simples", sorriu. "Cortamos o cabelo."
O despropósito da observação extraiu de Raquel um esgar de estranheza.
"Não digas tonterías, repreendeu-o. "A sério, como saímos desta embrulhada?"
"Já te disse, cortamos o cabelo", insistiu o historiador com o mesmo sorriso. "Chama-se haircut e significa um default parcial. Em 2012 a Grécia impôs aos credores privados que lhe perdoassem mais de metade da dívida, não foi? Isso foi um haircut. Em geral os default não são totais, mas parciais. A Grécia chamou os credores e disselhes: meus amigos, chegámos ao fim da linha, nós temos culpa porque contraímos dívida que agora não conseguimos pagar, vocês têm culpa porque nos emprestaram dinheiro sem avaliarem devidamente se tínhamos condições de vos pagar. Portanto temos de resolver isto de forma que todos sejam penalizados pelos seus erros. Ou seja, a Grécia paga a dívida, mas só paga uma parte. Os credores recebem o dinheiro, mas só recebem uma parte." Abriu as mãos, como se tivesse acabado a demonstração. "É isso um haircut."