"Mas não foram os Americanos e os Britânicos que andaram a imprimir dólares e libras à doida?"
379
"É verdade", assentiu Tomás. "O próprio Banco Central Europeu começou a fazer isso de uma maneira camuflada, para consternação dos Alemães."
"A inflação não disparou..."
"É um facto. Sabes, o que faz a inflação, na verdade, não é estritamente a impressão do dinheiro, mas a chegada desse dinheiro ao mercado. O que aconteceu é que os bancos centrais imprimiram o dinheiro mas os bancos comerciais, que tentavam desesperadamente equilibrar os seus balanços, não o injectavam na economia. Foi sobretudo por isso que a inflação não disparou. No caso americano aconteceu até que a grande maioria desses dólares não entrou na economia dos Estados Unidos porque foi parar à China, com os Americanos a beneficiarem assim das enormes vantagens de terem uma moeda que é usada como unidade monetária internacional, regalia de que mais nenhum país goza. Mas no instante em que o dinheiro novo começar a inundar a economia americana a inflação poderá tornar-se de repente galopante. Todos os estudos mostram que o rebentamento de uma grande bolha especulativa gera poderosas forças deflacionárias, de queda de preços, que desencadeiam crises bancárias graves e que estas provocam crises de dívida, as quais são seguidas da tentação quase irresistível de imprimir dinheiro, que conduz a grande inflação ou até a hiper-inflação."
"Em qual dessas fases estamos agora?"
"Na segunda, a crise da dívida, mas temos de estar conscientes de que a terceira fase envolve geralmente grande inflação. É essa terceira fase que os Alemães estão desesperadamente a tentar evitar. Saindo nós do euro e escolhendo a desvalorização como solução, temos de estar conscientes de que iremos viver um período de grande inflação e que ela não é nenhuma panaceia miraculosa. Além disso, a inflação é uma outra maneira de transferir para a população o pagamento da dívida. Esse é, aliás, o grande argumento que se pode invocar para defender a manutenção dos países do Club Med no euro. Muitos políticos têm uma tendência patológica para 380
recorrer à impressão de dinheiro para resolver os problemas da sua má governação. Como é criada inflação, fingem que a inflação é um fenómeno que não é provocado por eles e tentam assim safar-se da punição do eleitorado. Dentro do euro, e não podendo imprimir moeda, terão mesmo de controlar as despesas e adequá-las às receitas. Se não o fizerem, os seus erros de governação ficarão a nu."
O comboio começou nesse instante a abrandar e o som da intercomunicação irrompeu na carruagem.
"Senhores passageiros, a seguir é Santa Maria Novella", anunciou uma voz. "Próxima estação, Florença."
381
LVII
A estação de Santa Maria Novella regurgitava de gente. As plataformas estavam cheias de passageiros que aguardavam a ligação para o seu destino, sendo Roma e Milão os principais. Quando uma composição entrava na gare, uma multidão desaguava das carruagens para a plataforma e as coisas só normalizavam quando os viajantes de partida entravam nessas mesmas carruagens e os de chegada se dirigiam, numa massa desordenada, para a saída da gare.
A calma regressava então a Santa Maria Novella.
Balam instalara-se numa cadeira a ler o Corriere della Sera no grande átrio da estação, diante do placard com os horários das partidas e das chegadas. Espreitou o relógio por cima do quadro e sentiu o nervoso miudinho característico das operações delicadas. Baixou a cabeça por detrás do jornal e, abrigado assim dos olhares indiscretos, ligou o walkie-talkie.
"Águia para Condor 1", chamou. "Tudo a postos?"
Após um compasso de espera, o aparelho de comunicação estralejou com o som raspado da estática.
"Condor 1 para Águia", foi a resposta. "Afirmativo. Estou em posição na plataforma."
"Sentes-te tranquilo quanto às fotos? Elas chegam para identificares os alvos?"
"Sim, Águia. Não haverá problema. Tenho a fuça dos gajos marcada a ferro na cabeça."
Balam assentiu, satisfeito, mas não replicou. Em vez disso carregou 382
no segundo botão.
"Águia para Condor 2. Tudo a postos?"
Novo refrulhar de estática no walkie-talkie, desta feita c o m u m a v o z d i f e r e n t e a r e s p o n d e r d o o u t r o l a d o . "Condor 2 para Águia.
Afirmativo."
"Os rostos nas fotografias estão memorizados?" "Afirmativo."
Terceiro botão.
"Águia para Condor 3. Tudo a postos?"
"Condor 3 para Águia. Tutto bene."
Escondido atrás do jornal, o olhar de Balam dançava no átrio entre as horas de chegadas no placard e o relógio sobre o quadro.
Tratava-se seguramente de um efeito da tensão do momento, mas a verdade é que o ponteiro dos segundos parecia acelerar. Sem já se dar ao trabalho de fingir que lia o Corriere della Sera, o chefe de segurança seguiu a marcha de progressão do ponteiro com crescente ansiedade e esperou que atingisse o ponto mais alto.
Quando isso aconteceu carregou em todos os botões do walkie-talkie e entrou em comunicação simultânea com os três homens que espalhara na plataforma.
"Águia para Condores 1, 2 e 3."
"Sim, Águia?"
"Um minuto", anunciou. "Falta um minuto para o comboio chegar."
O tecido urbano espraiava-se para lá da via-férrea quando apareceu a plataforma com placas a indicarem Firenze. A composição abrandou ainda mais e, pressentindo o fim da viagem, os passageiros que saíam naquela estação puseram-se de pé e comprimiram-se no corredor, alinhando-se numa fila silenciosa até à porta da carruagem, as malas e os sacos nas mãos, os olhares fixos na saída.
O comboio travou e imobilizou-se por fim com um soluço e um longo suspiro. Foi nessa altura que Raquel e Tomás abandonaram o 383
quarto de banho e se juntaram à fila dos viajantes que se preparavam para desembarcar na estação de Florença.
"Puf, chegámos!", bufou ela, inclinando a cabeça para espreitar o exterior. "já não era sem tempo."
O historiador inclinou a cabeça para a sua companheira de viagem.
"Não te esqueças de me ajudar a descer as escadas, hem?"
A porta abriu-se automaticamente e os passageiros começaram a saltar para a plataforma número nove. Por causa das bagagens, o processo não se revelou tão fluido quanto desejável, mas mesmo assim foi avançando e ao fim de alguns segundos Raquel pulou para fora, pousou os dois sacos de viagem e voltou-se para trás para ajudar o português.
"Isso está mal", constatou ela, estendendo-lhe o braço. "Vamos, apoia-te em mim."
Tomás desceu as escadas muito devagar, curvado, até conseguir pousar o pé trémulo em solo firme.
"Ah, chegámos!"
Vendo o companheiro já em terra, a agente da Interpol pegou num dos sacos e esperou que ele pegasse no outro. Tomás, contudo, ignorou o saco e começou a caminhar em passos vacilantes, trôpego e com as costas curvadas. A espanhola revirou Os olhos, encanzinada, pegou também no segundo saco e apressou o passo no encalço do historiador.