"Mira, hombre, estás a exagerar um pouquito, não te parece?", protestou, mostrando os dois sacos que carregava. "Achas que sou tua criada ou quê?"
T o m á s i n d i c o u c o m o p o l e g a r a s c o s t a s c u r v a s . "Desculpa, mas não vês o meu estado?", perguntou. "Não estou em condições de carregar os sacos."
Com os lábios comprimidos, Raquel atirou às costas dele um olhar carregado de suspeita.
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"Hmm... não sei. Quer-me cá parecer que isso é tudo uma grande desculpa que inventaste para me pores a carregar esta tralha toda.
Não tens vergonha?"
O companheiro de viagem respondeu com um esgar dorido e apoiando a mo direita na região lombar.
"Ui! Isto custa!"
A chegada do comboio atraiu Balam para a porta que ligava o átrio às plataformas. Viu a composição oriunda de Barcelona estacionada na linha nove e os passageiros a desaguarem continuamente das múltiplas portas e a percorrerem a plataforma com as bagagens. Acto contínuo, os viajantes que partiam entraram para as carruagens e, instantes mais tarde, escutou o apito e o comboio recomeçou a rolar, ganhou velocidade e desapareceu para lá da gare.
Procurou os seus homens com o olhar e confirmou que eles se encontravam nos seus postos, Condor 1 na ponta mais afastada da plataforma nove, Condor 2 na extremidade mais próxima, Condor 3 numa cabina com visão geral sobre a gare. Voltou a atenção para a multidão de passageiros recém-chegados e procurou um rosto familiar em cada uma das pessoas. Nada descortinou que lhe chamasse a atenção.
Impaciente, aproximou o walkie-talkie da boca e carregou no primeiro botão.
"Águia para Condor 1", chamou. "Viste alguém?"
"Negativo, Águia. Mas tenho-os neste momento de costas, pelo que é difícil ver a cara de quem quer que seja. Estão todos a dirigir-se para Condor 2."
Segundo botão.
"Águia para Condor 2. Alguma novidade?"
O segundo homem levou alguns segundos a responder. "Condor 2
para Águia", foi a resposta. "Estou neste momento a proceder a verificação. Stand by."
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Quase automaticamente, Balam desviou o olhar para o seu segundo operacional. O homem encontrava-se de facto numa posição frontal aos passageiros que acabavam de desembarcar e estudava todos os rostos com muita atenção, comparando-os discretamente com fotografias que escondia numa mão.
Apesar de o chefe de segurança estar à porta do átrio, e portanto mais afastado, também ele se concentrou nos recém-chegados e procurou identificar os alvos que todos procuravam.
O walkie-talkie ganhou vida.
"Condor 2 para Águia", disse uma voz. "Negativo. Não identifiquei ninguém."
Balam premiu o terceiro botão.
"Águia para Condor 3. Qual é a situação?"
"Condor 3 para Águia. Negativo."
A plataforma nove foi-se esvaziando até que só sobravam quatro pessoas: duas freiras e um casal idoso. Balam respirou fundo e, reprimindo a frustração, deu meia volta e regressou ao átrio. Ergueu os olhos para o placard das partidas e chegadas e estudou a lista das origens; não estava prevista para esse dia mais nenhuma ligação proveniente directamente de Barcelona. Teria de contemplar as alternativas.
Voltou a colar o walkie-talkie à boca e carregou nos três botões em simultâneo.
"Águia para Condores 1, 2 e 3", chamou, os olhos sempre colados ao placard. "Provavelmente eles apanharam outra ligação." Estudou as horas previstas de chegada. "Atenção ao próximo comboio. Vem de Milão e chega daqui a cinco minutos."
Pegou no Corriere della Sera e, resignado, sentou-se de novo no seu lugar, alheio ao casal de idosos e às duas freiras que, em passo lento, dir-se-ia mesmo arrastado, atravessavam nesse momento o átrio e se dirigiam para a rua.
O dia ia ser longo.
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LVIII
O ombro de Raquel funcionava quase como uma bengala; era o ponto de apoio que permitia a Tomás progredir. Caminhar curvado e com passos hesitantes constituía uma tarefa muito mais difícil do que se poderia à primeira vista supor, mas o historiador sentia-se satisfeito por ter conseguido atravessar desse modo toda a plataforma sem que nenhum dos dois tivesse sido reconhecido.
"Viste os tipos?", sussurrou a espanhola sem se atrever a virar-se para trás. "Joder, nem se deram ao trabalho de disfarçar!..."
"Vinham com tudo", retorquiu o historiador. "Walkie-talkies e fotografias. Reparaste que uni deles até tinha a coronha de uma pistola a espreitar do casaco?"
"Então não reparei? Madre mia, safámo-nos de boa..." "A quem o dizes!"
Por fim saíram da estação. Já na rua, sentiram o calor do sol banhar-lhes as faces. Foi como se se tivessem libertado nesse instante e só então a agente da Interpol se atreveu a virar-se para o companheiro de viagem.
"E pensar que desconfiei que era tudo um estratagema teu para não carregares as malas!", desabafou. "Como é que adivinhaste que estavam à nossa espera?"
Tomás fez um gesto com a cabeça a indicar-lhe um restaurante de toldos em riscas vermelhas e brancas do outro lado da praça da estação, como se lhe dissesse que deveria prosseguir até lá.
"Chiu, vamos até àquela trattoria", recomendou-lhe. "Os tipos podem ainda estar a observar-nos."
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Consciente de que era de facto cedo para se acharem totalmente fora de perigo, a espanhola obedeceu e dirigiu-se à passagem de peões para atravessar a praça. O sinal estava vermelho, pelo que aguardaram que mudasse.
"Sim, mas como adivinhaste?"
"Não adivinhei", respondeu ele sem mexer os lábios, sempre a disfarçar. "Suspeitei."
"Como? Com base em quê?"
Tomás esboçou um sorriso discreto.
"Chama-lhe intuição, se quiseres." Tocou com o dedo na ponta do nariz.
"Cheirou-me que eles podiam estar-nos no encalço."
Raquel atirou-lhe o esgar de quem não estava a comprar a resposta e fez um gesto a indicar o saco onde guardava o computador portátil.
"Qual intuição qual carapuça!", devolveu de pronto. "Foi o computador, não foi? Percebeste que os tipos o localizaram pelo GPS!"
Olhou-o com admiração. "Que espertalhão me saíste!"
O historiador sorriu, ainda a ocultar o jogo.
"Caraças, não se te pode esconder nada..."
O sinal dos peões mudou para verde e os dois atravessaram a passadeira, sempre a caminharem com enorme dificuldade.
Uma vez no outro lado da praça, dirigiram-se à trattoria do toldo vermelho e branco e entraram no estabelecimento. Ao vê-los cruzarem
a
porta,
um
empregado
de
bigodes
revirados,
evidentemente um católico fervoroso, esboçou uma vénia respeitosa na sua direcção.
"Buon giorno, irmãs", cumprimentou-os com grande cerimónia. "É
um piacere receber as consortes do Senhor no meu humilde estabelecimento." Fez um gesto floreado a indicar uma mesa livre. "Prego, sentem-se, sentem-se! O que vão desejar?"
Tomás, que até aí caminhava curvado e apoiado em Raquel, endireitou-388
se de repente, como se tivesse ficado subitamente curado do seu mal de costas, e fitou-o.
"Precisamos de ir ao quarto de banho", disse ele com uma inesperada voz de homem que assustou o empregado. "Depois traga-nos duas pizas." Hesitou, pensando no tipo de piza que queria. "A la puttanesca, per favore."