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Um silêncio repentino abateu-se sobre o Salone dei Cinquecento, a grande sala no Palazzo Vecchio onde funciona a Câmara Municipal de Florença. Com perfeito domínio das artes da gestão dramática do tempo, o juiz Seth permaneceu mudo durante alguns segundos, deixando o olhar severo derramar-se pelos frescos de Vasari, que decoravam as paredes 393

altas para ilustrar os triunfos de Florença sobre Pisa Siena, e pelas várias estátuas brancas alinhadas nas alas, incluindo a estátua do Génio da Vitória, de Miguel Ângelo. O Salone dei Cinquecento era a maior sala de Itália usada pelos poderes civis e tinha sido construído por ordem do próprio Girolamo Savonarola.

O juiz Seth pegou num pequeno martelo e, com um gesto protocolar, bateu com ele na secretária.

"Minhas senhoras e meus senhores", exclamou com ênfase, as palavras protocolares carregadas de um forte sotaque francês. "Declaro aberta esta sessão preliminar do Tribunal Penal Internacional convocada para formular as acusações relativas aos crimes contra a humanidade cometidos na crise financeira e económica internacional!"

Uma salva de palmas, polida e ordeira, percorreu o salão do Palazzo Vecchio. O juiz pousou o martelo e após pigarrear, preparando-se para as palavras introdutórias, apontou para a principal estátua que decorava o salão.

"Parece-me apropriado que nos reunamos em Florença, a cidade onde nasceu a banca moderna, e estejamos neste lugar carregado de história, sob o olhar vigilante da estátua do Génio da Vitória, do grande Miguel Ângelo, uma vez que é justamente com história e vitória que nesta sessão vamos lidar", proclamou. "A história da justiça e a vitória dos oprimidos. Porque, meus caros, vamos sobretudo fazer justiça."

Varreu o salão com um olhar dominador. "O mundo, ninguém o ignora, mergulhou numa crise profunda, uma crise tão grande que só tem comparação com a Grande Depressão dos anos 30 e que, por isso mesmo, já é conhecida por Segunda Grande Depressão. Esta crise, minhas senhoras e meus senhores, tem autores e responsáveis, pessoas que pelos seus actos e omissões nos trouxeram até este ponto. Precisamos de os identificar, de os processar judicialmente e de os sentar em tribunal para responderem pelos seus crimes. O Tribunal Penal Internacional foi criado justamente para julgar crimes contra a humanidade. Que ninguém tenha dúvidas, pois é de crimes contra a humanidade que estamos a falar 394

quando nos referimos às acções que conduziram a esta crise violentíssima! A culpa, garanto, não morrerá solteira!"

Uma salva de palmas espontânea ergueu-se da multidão que se acotovelava no Salone dei Cinquecento. Não havia uma vítima da crise no planeta que não ansiasse por justiça e pela punição daqueles que haviam arrastado o mundo para a situação que nesse momento se vivia. A ovação ao juiz Seth cristalizava o sentimento de revolta e a sede de justiça.

Como um actor a dominar o palco, o juiz levantou a mão e pediu silêncio. A ovação morreu.

"Nesta sessão preliminar serão identificados suspeitos que irão a julgamento em momento oportuno." Indicou uma mulher de meia-idade, magra e de olhar grave, sentada numa secretária diante do público e rodeada por uma equipa. "A procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional, professora Agnès Chalnot, reuniu a sua equipa e vai apresentar a lista de suspeitos que se sentarão no banco dos réus para responder por estes crimes. Ela passou os últimos tempos a coligir dados e a identificar responsáveis, todos eles inocentes até que este tribunal, após devido julgamento, decida em contrário. Caberá agora à procuradora-chefe e à sua equipa a tarefa de formular a acusação." Voltou a levantar a mão na direcção do causídico. "Professora Chalnot, faça o favor."

A procuradora-chefe estava sentada na mesa da acusação, rodeada da sua equipa. Ergueu-se no seu lugar, exibindo uni vestido negro até aos pés, e encarou o juiz.

"Meritíssimo, agradeço a confiança que foi depositada em mim e na minha equipa", começou por dizer. "Como sabe, a minha responsabilidade agora é indiciar suspeitos para que sejam chamados a julgamento neste tribunal. Se não vir inconveniente, entregarei ao meu colega, o procurador Carlo del Ponte, a apresentação da lista de nomes que apurou durante a investigação que até recentemente levou a cabo nos Estados Unidos."

O juiz acedeu com um leve movimento da cabeça. "Com certeza.

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Tem então a palavra o doutor Carlo dei Ponte."

Vendo-lhe passada a responsabilidade de formular a acusação, o procurador do Tribunal Penal Internacional, um homem de rosto ossudo e sobrancelhas densas, ergueu-se devagar do seu lugar, abotoou o casaco e, de papéis na mão, dirigiu-se ao ponto central da plataforma montada no salão.

"Excelentíssimo e meritíssimo juiz, caros colegas, minhas senhoras e meus senhores", disse, recorrendo à habitual formulação no início das intervenções em processos do género. "Todos sabemos que esta crise começou nos Estados Unidos e foi guiada por uma política irresponsável de desregulação dos mercados financeiros. O resultado de tudo isso foi uma recessão global que se transformou numa grande depressão e que custou o emprego a mais de trinta milhões de pessoas, e ainda cortes salariais e subida de impostos para outras centenas de milhões." Fez um gesto a indicar a sua mesa. "Eu e a minha equipa dirigimos por isso os nossos esforços no sentido de identificar os responsáveis por esse acto hediondo e as motivações que conduziram a ele. Irei apresentar os suspeitos e as provas que os envolvem neste crime cometido contra a humanidade."

O procurador fez um gesto imperial na direcção do funcionário judicial que havia anunciado a entrada do juiz no salão.

"Giuseppe, a tela."

O funcionário pegou num controlo remoto e carregou num botão.

Escutou-se um zumbido eléctrico e uma tela branca começou a descer de uma parede lateral, tapando o Fresco de Vasari a ilustrar a vitória sobre Pisa.

"Pronto, dottore."

O causídico do Tribunal Penal Internacional fez um sinal com a cabeça para um dos seus colaboradores e, de imediato, a fotografia de um homem de meia-idade sorridente, de grandes óculos e testa redonda, encheu a tela gigante do salão.

"Primeiro suspeito de crimes contra a humanidade que conduziram à Segunda Grande Depressão", anunciou, projectando a voz com 396

enorme pompa. "Alan Greenspan, presidente do banco central americano, a Federal Reserve, entre 1987 a 2006. O senhor Greenspan tornou-se notado em 1985, quando os reguladores federais começaram a investigar irregularidades cometidas por um homem chamado Charles Keating na gestão de dinheiros de clientes. Contratado por Keating, Greenspan escreveu aos reguladores a elogiar Keating e a garantir que ele sabia investir o dinheiro dos clientes. Keating foi preso pouco depois. O que aconteceu a Greenspan? Foi promovido pelo presidente Reagan a chefe máximo da Fed."

Um burburinho percorreu o Salone dei Cinquecento. O

procurador Cano del Ponte apontou para o rosto que permanecia na tela.