"Esperem!", ainda gritou. "Eu não sou um dos..."
O português não conseguiu terminar a frase. Foi atingido uma e outra vez à bastonada até tombar no chão. Contorceu-se de modo a ficar em posição fetal e proteger a cabeça com os braços, mas continuou a ser agredido por cassetetes e pontapés sucessivos durante longos segundos. Rolou pelo chão e, num salto, pôs-se de pé e desferiu dois murros às cegas, um dos quais atingiu alguém. Os polícias agarraram-no de imediato e um deles apontou-lhe um objecto negro.
"Aaaghh!..."
Sentiu um choque eléctrico e uma dor incrível percorreu-lhe o corpo, 40
contraindo-lhe os músculos e fazendo-o ver estrelas. As agressões pararam tão depressa quanto haviam começado. Sentiu-se içado por braços poderosos, que lhe forçaram as mãos para trás das costas.
Tomás tentou libertar-se mas não conseguiu sequer mover os braços; era como se os músculos se tivessem transformado em chumbo.
Percebeu então que havia sido algemado.
"Oiçam, não temos nada a ver com isto", murmurou, ofegante.
"Fomos apanhados pela manifestação."
Os polícias ignoraram-no. Teve a sensação de flutuar e tomou consciência de que o arrastavam pela rua. Olhou em redor e viu mais polícias de choque emergirem da neblina de gás lacrimogéneo e passarem em corrida. Virou-se para trás e apercebeu-se de que o professor
Markopoulou
também
era
levado
pelos
polícias.
Arrancaram-lhes as máscaras e o odor apimentado do gás lacrimogéneo ardeu-lhes nos olhos e no nariz, mas apenas ligeiramente, uma vez que se afastavam já das nuvens libertadas pelas granadas.
Os dois foram atirados para junto de um poste de iluminação e deram consigo no meio de um magote de manifestantes igualmente algemados, todos eles sentados ou deitados pelos passeios, alguns com o símbolo anarquista tatuado nos braços.
O arqueólogo grego encarou-o enfim, os olhos avermelhados de lágrimas por causa dos efeitos do gás lacrimogéneo.
"Já viu isto?", perguntou o professor Markopoulou com uma expressão atarantada. "Está tudo louco! Até nos imobilizaram com electrochoques, veja lá! Estes animais usaram tasers contra nós!"
Fora então isso que provocara o choque brutal que Tomás sentira ao ser imobilizado.
"Pois é", aquiesceu. "Prenderam-nos."
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IV
O homem de bata branca aproximou-se de Tomás, observou-lhe as equimoses e disse umas palavras em grego. Antes que o português lhe pudesse explicar em inglês que era estrangeiro e não percebia grego, o professor Markopoulou interveio em seu socorro e falou com o médico. Os dois trocaram algumas palavras até que o arqueólogo se voltou para o seu colega.
"Tem aí duzentos euros?", perguntou. "Dê-lhe o dinheiro."
Tomás devolveu-lhe o olhar vazio, sem entender onde queria o professor Markopoulou chegar.
"Para quê?"
O grego fez um sinal com o polegar a indicar o médico.
"Para que ele trate de si."
O historiador arregalou os olhos.
"Perdão?", balbuciou.
"Pague ao médico."
Fez-se luz na mente de Tomás, ou pelo menos ele assim pensou.
"Ah, isto é um hospital privado?"
"Não, é público."
O português ficou de novo desconcertado.
"E tenho de pagar duzentos euros para ser atendido num hospital público? Ena, as taxas moderadoras não são nada moderadas por estas bandas!..."
O arqueólogo revirou os olhos, impaciente com a compreensão lenta do colega.
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"Quais taxas moderadoras?! O dinheiro é para o médico, não é para o hospital."
O olhar de Tomás desviou-se para o homem de bata branca que aguardava pacientemente o desenlace do diálogo.
"Para o médico?", admirou-se mais uma vez. "Não estou a perceber..."
"É o suborno", esclareceu o professor Markopoulou. "Pague-lhe o suborno para ele tratar de si!"
O português fitou o colega e depois o médico e depois o colega de novo, atónito com o que acabara de escutar.
"Tenho de subornar o médico num hospital público para ele tratar de mim?!"
"Claro", devolveu o arqueólogo. "Aqui na Grécia é assim, não sabia? Chama-se fakelaki. Temos de pagar aos funcionários públicos por baixo da mesa se queremos que eles façam o seu trabalho."
Foram precisos ainda dois segundos para a situação entrar em pleno na consciência de Tomás. Quando por fim isso aconteceu, não fez mais perguntas. Meteu a mão no bolso, tirou duzentos euros e, com um gesto resignado, entregou-os ao médico.
A deslocação para a esquadra foi feita em silêncio na carrinha celular. A polícia tinha levado os manifestantes feridos para receberem tratamento no hospital, e, agora que haviam sido vistos e tratados, eram transferidos para o posto onde ficariam detidos até que um juiz os ouvisse.
"Não me diga que também é preciso subornar o juiz para ele nos julgar", gracejou Tomás, ainda impressionado com o que acontecera no hospital horas antes. "Só cá faltava mais essa!"
O professor Markopoulou nem levantou a cabeça.
"É natural que tenhamos de lhe pagar alguma coisa."
O português fitou o colega, siderado.
"Está a falar a sério?"
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O arqueólogo não se deu ao trabalho de responder e o silêncio regressou ao interior do carro celular. Escutavam-se lá fora sirenes sucessivas; eram as ambulâncias e os carros da polícia e dos bombeiros a passarem de um lado para o outro numa azáfama incessante. O dia havia sido movimentado e, apesar de a noite já ter caído, dava a impressão de que as coisas permaneciam agitadas.
"Parece que morreram três pessoas", acabou o professor Markopoulou p or re velar. "Sufocadas no incê ndio."
"Como sabe isso?"
"Ouvi os polícias no hospital. Os corpos foram levados para lá."
"E a mulher e a menina que retirámos do edifício? Safaram-se?"
O grego encolheu os ombros.
"Sei lá", disse com desprendimento fingido. "Mas acho que sim.
Os três mortos são pessoas encontradas pelos bombeiros dentro do edifício, o que não foi o caso delas."
Tomás suspirou de alívio.
"Ainda bem que as duas se salvaram", observou, sentindo um peso sair-lhe de cima. "O curioso é que, em vez de nos darem os parabéns, estes tipos prenderam-nos. Irónico, hem?"
O professor Markopoulou levantou o olhar fatigado e contraiu o rosto num sorriso forçado.
"Talvez se os subornarmos eles nos dêem os parabéns", gracejou.
"Quem sabe?"
O carro celular travou com um guincho e imobilizou-se. Ouviram-
-se vozes lá fora e as portas abriram-se com grande fragor. Os polícias puxaram os detidos para o exterior e conduziram-nos para a esquadra. Depois de aguardar a sua vez num banco de madeira, Tomás foi chamado a dar os seus dados de identificação.
Perguntaram-lhe o nome, pediram-lhe o passaporte e assentaram a informação num caderno.
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"Oiçam, fui detido por engano", explicou o português. "Nem sou grego, como sabem. Ia apenas a passar na rua e..."
"Silêncio!", cortou o graduado de serviço num inglês rudimentar.
"Se tem explicações para dar, dê-as ao juiz. Não estou para conversas."
O graduado registou as derradeiras informações sobre a identidade do detido e quando terminou passou-o a um guarda. O