Sem perder tempo, Raquel encavalitou-se sobre o túmulo e fez força para erguer a tampa de mármore, mas o português travou-a e puxou-a para baixo.
"Enlouqueceste?", perguntou num tom de repreensão. "O que diabo estás a tentar fazer?"
"A abrir o túmulo, ora essa!"
O historiador lançou um olhar em redor, para se certificar de que ninguém os estava a observar; os seus receios, porém, confirmaram-se, pois viu um monge encaminhar-se para eles com ar furioso.
"O que andam vocês aí a magicar?", questionou o monge. "Desça já daí, minha senhora!"
Apanhados em flagrante, Tomás e Raquel ficaram por momentos paralisados. O português foi o primeiro a reagir; recompôs-se de imediato e assumiu um ar doutoral.
"Somos da equipa de restauro", disse com voz surpreen-dentemente firme. "Viemos de Pisa."
O monge hesitou, desconcertado. .
"Ah! Mas... vocês não vinham restaurar o Giotto?"
"Claro que sim. Só que estamos também a fazer uma inspecção aos mausoléus. Se houver aqui algum problema, faremos o restauro sem encarecer o trabalho. Tudo incluído. Sabe como é, o patrão é muito católico e tem muito gosto em ser útil à nossa santa Igreja."
O franciscano esfregou as mãos, o semblante passando sucessivamente da cólera para a surpresa e depois para a satisfação.
"Ah, muito bem, muito bem!", condescendeu, desenhando uma cruz no ar diante de Tomás. "Que Deus vos abençoe, a vós e ao vosso patrão." Inclinou-se, muito atencioso. "Precisam de alguma coisa?"
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"Apenas de tranquilidade."
"Com certeza! Em caso de necessidade, chamem-me. Estou ali junto ao altar."
O monge virou costas e afastou-se, lançando olhares para trás. Os dois visitantes, conscientes de que estavam a ser vigiados, assumiram uma postura aparentemente profissional, como se inspeccionassem o estado do mármore do mausoléu de Dante.
"Excelente capacidade de improviso", elogiou Raquel logo que se sentiu mais à vontade. "Estou impressionada."
"Nada disto seria necessário se tivesses juízo", sussurrou ele em tom de repreensão. "Não se pode chegar a um sítio destes e começar a abrir túmulos, ouviste? Muito menos de personalidades como estas! Que ideia é essa de quereres abrir o túmulo de Dante, assim sem mais nem menos?"
"As ossadas de Dante não se encontram dentro do sepulcro, Tomás! Não há problema, o túmulo está vazio!"
"Não interessa! Tens de ter respeito, percebes?" Fez um gesto a indicar a pedra superior do túmulo. "Além do mais, isto é demasiado pesado para se abrir desse modo."
"Mas, Tomás, não percebes?", insistiu ela, indicando enfaticamente o túmulo de Dante. "Este túmulo está vazio! É obvio que foi por isso que Filipe o escolheu para esconder o DVD."
O português abanou a cabeça e indicou o bloco de notas que ela mantinha na mão.
"Lê a frase outra vez."
Sem entender o pedido, e muito menos o cepticismo dele, Raquel espreitou os apontamentos.
"Vai a Santa Croce e procura sobre o túmulo de Satanás", leu, levantando de seguida os olhos para o fitar com grande intensidade.
"Isto é muito claro." Apontou com insistência para o sepulcro. "Temos de procurar neste túmulo."
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"Procura sobre o túmulo de Satanás", repetiu Tomás. "Sobre o túmulo, não no túmulo ou dentro do túmulo. Entendeste? Não vale a pena abrires o túmulo porque não está nada lá dentro. O material que queremos está sobre o túmulo."
A atenção da agente da Interpol desviou-se de novo para o sepulcro de Dante Alighieri e fixou-se na estátua sobre o túmulo, mostrando um homem sentado de mão no queixo no topo, em pose pensativa.
"Achas que é aquela estátua que tem o material?"
O historiador encolheu os ombros, como se a resposta lhe fosse indiferente.
"Vai lá espreitar."
Raquel voltou a encavalitar-se sobre o túmulo e vasculhou por detrás da estátua no topo.
"Nada", constatou com desânimo. "Não está aqui nada." "Então desce."
A espanhola voltou a espreitar o topo do túmulo.
"Ouve, se calhar é melhor ver se está aqui no..."
"Desce!", ordenou ele com voz de comando. "Imediatamente!"
Ela obedeceu, mas não parecia contente.
"Olha lá, o que se passa contigo?", protestou quando voltou ao chão. "Não vês que temos de passar isto a pente fino? A busca tem de ser minuciosa."
Tomás abanou a cabeça com um movimento vigoroso. "Não é este o túmulo certo."
"Não?", admirou-se Raquel, cruzando Os braços e esboçando a expressão contrariada de uma menina mimada. "Então qual é, senhor Sabe Tudo? 1-lã? Diz-me, qual é?"
O historiador recuou de novo até ao centro da basílica e estudou os vários túmulos ao longo das duas paredes. Após uma pausa para reflexão, encaminhou-se para a parede direita e deteve-se diante do quarto túmulo, pousando a mão na placa com o nome.
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"É este."
A espanhola aproximou-se. Tratava-se de um túmulo simples, apenas com uma estátua, uma figura feminina sentada sobre o tampo com a mão direita a segurar um escudo redondo.
"Este?", admirou-se, ainda sem ver o nome esculpido na base.
"Porquê este?"
"Porque este homem, no seu tempo, era conhecido por Il Diavolo.
O Diabo." Arqueou os olhos. "Satanás."
O olhar de Raquel desceu para a placa na base do túmulo, tentando identificá-lo. O nome estava inscrito na segunda linha.
Nicolaus Machiavelli.
"Maquiavel?"
O historiador anuiu.
"A grande obra de Maquiavel, O Príncipe, foi denunciada repetidamente como uma criação do Diabo devido às suas teses amorais de que os fins justificam os meios e incluído no Index dos livros proibidos pela Igreja por ofender a ética cristã. O seu romance Belfagor arcidiavolo menciona até o Diabo explicitamente no título. Diz-se que o papa visitou Maquiavel no seu leito de morte e lhe perguntou se ele renunciava ao Diabo. Maquiavel não respondeu. O papa perguntou uma segunda vez, de novo sem obter resposta. À terceira, Maquiavel abriu os olhos e disse: 'Esta não é altura para fazer inimigos.'"
A espanhola mostrou os dentes, num sorriso forçado.
"E esta não é a altura para contar graçolas parvas", repreendeu-o. "Se Maquiavel é Satanás, onde está o material que Filipe escondeu?"
Foi a vez de Tomás se empoleirar no túmulo e tactear o espaço por detrás da estátua. Apalpou as costas da figura de pedra e só se deteve quando mexeu na parte de trás do escudo circular. Sentiu com a ponta dos dedos um objecto liso no verso do escudo e percebeu que estava colado por fita-cola. Arrancou a fita adesiva e retirou o objecto do 440
seu esconderijo.
Era um DVD.
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LXVI
O Arno gorgolhava de mansinho, o som da água momentaneamente abafado pelo ocasional automóvel ou motociclo que cruzava a pequena rua marginal. Sentados junto ao murete fronteiro ao rio, como mendigos miseráveis a pedincharem uma esmola, Tomás e Raquel vigiavam a entrada dos Uffizi pela fachada de Vasari, um acesso habitualmente aberto ao público mas que nessa ocasião se encontrava fechado por uma barreira e com a passagem controlada por um homem corpulento. Na última hora haviam notado ali alguma actividade.
"Olha, lá vêm outros", murmurou Raquel, chamando a atenção para três vultos que nesse momento se aproximavam da direita. "É mais do mesmo, hem?"