Sem se virarem, para não denunciar interesse no movimento dos recém-chegados, Tomás seguiu discretamente pelo canto dos olhos a aproximação dos vultos. Eram três pessoas de capuz e com sacos nas mãos, provenientes da Ponte alle Grazie; pela corpulência e pela maneira de caminhar percebia-se que se tratava de dois homens e uma mulher.
Vinham calados e pareciam atentos ao espaço em redor, como se estivessem alerta.
"Não há dúvida", concluiu o português, sempre impassível. "É aqui que tudo se passa."
A agente da Interpol seguiu os três vultos com o olhar, vendo-os mergulhar na sombra por detrás das colunas da fachada e desaparecer pelo átrio central dos Uffizi.
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"O Filipe disse que nos apresentássemos à meia-noite e perguntássemos pelo Mefistófeles", lembrou ela. "Não será melhor esperar por essa altura?"
Tomás fez um gesto negativo com um movimento quase imperceptível e meteu a mão no bolso.
"Avançamos quando as condições estiverem certas e seguindo o nosso plano", retorquiu, exibindo a coronha do taser. "Vamos ver se aparece alguém que seja adequado."
Permaneceram mais alguns minutos sentados junto ao murete, com o chapéu no chão a pedir esmola e uma folha de cartolina a identificá-los como romenos que precisavam de ajuda. Passou mais um grupo de três pessoas com a cabeça coberta, desta feita duas mulheres e um homem, e a seguir um grupo de quatro, dois homens e duas mulheres. Ninguém parecia vir sozinho.
Quando consideravam já o plano alternativo, o de se apresentarem eles mesmos nos Uffizi conforme requerido no e-mail, aperceberam-se de que um casal também com casacos de capuz a ocultar-lhes os rostos aparecia da esquerda, da Lungarno degli Archibusieri. Tomás fez sinal a Raquel e ambos se levantaram e cruzaram a rua a mancar, como se tivessem dificuldade em caminhar. Uma vez no outro passeio, viraram-se e seguiram ao encontro dos dois desconhecidos.
No momento em que se iam cruzar com eles, Tomás tirou o taser do bolso e disparou consecutivamente sobre um e sobre o outro.
Os dois caíram no chão, atordoados.
"Depressa!", disse Raquel num sussurro prenhe de urgência.
"Ajuda-me a puxá-los para a berma!"
Arrastaram os corpos assarapantados dos dois encapuzados para a estreita galeria do passeio que conduzia à Ponte Vecchio, uni espaço convenientemente abrigado dos olhares indiscretos, e colaram-lhes aos narizes algodão embebido em clorofórmio. Os movimentos dos dois cessaram por completo. Enquanto a espanhola verificava se tinham mesmo ficado inconscientes, Tomás vasculhou-lhes nos sacos.
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"Têm dose para duas horas de sono", constatou Raquel, erguendo o olhar para o português. "Então? O que trazem eles?"
O historiador tirou do interior dos sacos um tecido branco sujo, áspero como serapilheira, e exibiu-o com um sorriso de satisfação e uni brilho traquina a refulgir-lhe nos olhos.
"Trazem o que precisamos", disse. "Anda, veste-te."
Aproveitando a sombra, despiram os dois corpos inanimados e vestiram as roupas que eles traziam, tendo o cuidado de também taparem a cabeça com o capuz do casaco. Vistoriaram-lhes os bolsos e localizaram uma folha amarrotada que desdobraram de imediato.
No centro da folha estava rabiscada a lápis uma mensagem enigmática.
Password: Marcos, 5:9
"Que é isto?"
"É uma referência ao Evangelho de Marcos", constatou Tomás.
Estreitou as pálpebras. "Dá a impressão de que se trata da senha para entrar nos Uffizi."
Raquel atirou-lhe um olhar de pânico.
"Meu Deus, onde vamos nós arranjar agora uma Bíblia para ler esse versículo?"
"Não há hipótese", retorquiu o historiador, consultando o relógio.
"Já são quase onze da noite, teremos de improvisar."
Sem deixar à espanhola tempo para levantar objecções, Tomás regou de vinho as roupas dos dois e deixou-os inanimados num canto escuro do passeio coberto pela galeria; quem por ali passasse e os visse pensaria que não passavam de uns ébrios que dormiam naquele canto. Depois pegou num saco e fez sinal à companheira de que o imitasse. Não muito convencida, Raquel agarrou no saco da mulher que tinham posto sem sentidos e acompanhou-o em direcção à 444
entrada dos Uffizi, ambos assumindo a identidade do casal encapuzado.
"Estás louco!", sussurrou ela com a voz dominada pelo alarme.
"Não podemos entrar sem ler primeiro esse versículo da Bíblia!..."
"Não há tempo."
"Mas... vamos ser apanhados!"
"Temos de arriscar, não há alternativa!"
Cruzaram a entrada pela fachada de Vasari e depararam-se imediatamente com o homem corpulento que vigiava o acesso e lhes cortou o caminho no início do cortile, o pátio interior dos Uffizi.
"Como te chamas?"
Tomás ficou embasbacado, sem saber o que responder.
"Domenico", acabou por dizer, improvisando com o primeiro nome que lhe veio à cabeça. "O meu nome é Domenico."
O homem arreganhou os dentes, numa expressão de contrariedade.
"Não é isso, idiota!", repreendeu-o. "A contra-senha. 'Como te chamas?'"
O historiador percebeu nesse instante que a própria pergunta era a senha; teria de dar a contra-senha. Mas que contra-senha seria adequada a uma senha daquelas? Reflectiu durante uma fracção de segundo e concluiu que só podia tratar-se de uma citação do Evangelho de Marcos, mencionado no papelinho que haviam encontrado nos bolsos do casal que tinham posto fora de combate junto ao Ponte Vecchio. Fez um esforço para se lembrar do que lera no Evangelho de Marcos e ocorreu-lhe então o episódio do exorcismo de Jesus em Gerasa, descrito pelo evangelista, no qual Jesus perguntou a um espírito maligno como se chamava.
"Legião", disse Tomás de repente, quase como se a palavra fosse a sua bóia de salvação. "Chamo-me Legião, porque somos muitos.'"
O guarda deu um passo para o lado.
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"Podem passar", autorizou, apontando para uma porta à direita.
"Subam por ali até ao terceiro andar. Os homens vestem-se na Sala Lippi, as mulheres na Sala Leonardo, e a cerimónia começou na Sala Botticelli, entre a Lippi e a Leonardo. Despachem-se, já vão atrasados!"
Antes que fizessem algo que os denunciasse, Os dois retardatários apressaram o passo e desapareceram para lá da porta indicada, Raquel pasmada com a presença de espírito do historiador.
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LXVII
A sala estava mergulhada na escuridão, apenas iluminada pelas chamas trémulas de quatro velas assentes em cruz, cada uma num ponto cardeal. Vestidos com as tónicas ásperas que haviam retirado dos sacos, Tomás e Raquel entraram em passo leve na Sala Borticelli e juntaram-se ao grupo de acólitos que, também de túnica, se encontrava de costas, toda a gente virada para a parede interior. Diante dessa parede, decorada com um tríptico de Van der Goes a representar a adoração ao menino Jesus, estava uma mesa que, ornamentada por Uma enorme cabeça de bode, parecia desempenhar a função de altar; o contraste entre o altar demoníaco e o tríptico cristão era evidentemente uma maldade intencional.