Duas mesinhas baixas tinham sido viradas, um abajur quebrado estava caído no chão, o tapete
ensopado de sangue.
No outro lado da sala, estendido de maneira grotesca, estava o corpo de Carol Roberts. Ela
estava nua, as mãos amarradas nas costas com uma corda de piano. Haviam-lhe jogado ácido no rosto, nos seios e entre as coxas. Os dedos da mão direita estavam quebrados. O rosto estava bastante machucado e inchado, e um lenço embolado fora enfiado em sua boca. Os dois detetives ficaram observando Judd, em silêncio, enquanto ele contemplava o corpo de Carol, aturdido.
- Está muito pálido - disse Angeli. - É melhor sentar-se.
Judd sacudiu a cabeça e respirou fundo por diversas vezes. Quando falou, a voz tremia de
raiva:
- Mas… mas quem poderia ter feito uma coisa dessas?
- É o que estamos esperando que nos diga, Dr. Stevens - disse McGreavy.
Judd fitou-o em silêncio por um minuto, perplexo.
- Ninguém jamais poderia querer fazer uma coisa dessas com Carol. Ela jamais fez mal a
alguém em toda sua vida.
- Acho que já está na hora de começar a cantar outra melodia - comentou MacGreavy. -
Ninguém podia querer fazer mal a Hanson, mas enfiaram uma faca nas costas dele. Ninguém poderia querer fazer mal a Carol, mas derramaram ácido por todo o corpo dela e torturaram-na até à morte.
McGreavy fez uma pausa. Ao continuar, seu tom era bem mais ríspido:
- E depois disso ainda tem a coragem de dizer que ninguém poderia querer fazer mal aos dois!
Mas que diabo é, afinal? Cego, mudo e idiota? Essa garota trabalhou aqui durante quatro anos. O senhor é um psicanalista. Vai querer dizer-me que nunca soube de nada, nem jamais se importou com a vida pessoal dela?
- Mas é claro que eu me importava - disse Judd, a voz tensa. - Ela tinha um namorado, e eles
iam-se casar…
- É Chick. Nós já falamos com ele.
- Mas ele jamais faria uma coisa dessas! É um rapaz decente e amava Carol…
- Quando foi a última vez que viu Carol viva? - perguntou Angeli.
- Já lhes disse isso. Foi quando saí daqui para ir falar com a Sra. Hanson. Pedi a Carol que
fechasse o consultório para mim.
A voz de Judd estava trêmula. Ele engoliu em seco e respirou fundo, procurando controlar-se.
- Tinha mais algum paciente marcado para hoje quando saiu?
- Não.
- Acha que o crime foi obra de algum maníaco, Doutor?
- Só pode ter sido um maníaco. Mas… mesmo um maníaco precisa de alguma motivação.
- É o que eu também acho - disse McGreavy.
Judd olhou mais uma vez para o corpo de Carol. Tinha o aspecto triste de uma boneca de
trapos desfigurada. Furioso, ele indagou aos detetives:
- Por quanto tempo pretendem deixá-la assim?
- Eles já vão levá-la - informou Angeli. - O legista e os outros técnicos já terminaram o seu
serviço.
Judd virou-se para McGreavy.
- Quer dizer que a deixaram assim só por minha causa?
- Exatamente. E vou perguntar novamente: há alguma coisa aqui que alguém pudesse querer
desesperadamente, a ponto de - ele fez uma pausa e indicou o corpo de Carol - ter feito isso?
- Não.
- O que me diz das fichas dos seus pacientes?
Judd sacudiu a cabeça.
- Não há nada de importante nelas.
- Não está querendo cooperar, não é mesmo, Doutor?
- Acha que também não quero descobrir quem fez uma coisa dessas? Se houvesse qualquer
coisa nas fichas que pudesse ajudar, eu seria o primeiro a dizer. Conheço bastante bem os meus pacientes. Não há nenhum que fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Tenho certeza de que o crime foi cometido por alguém de fora, por um estranho.
- Como sabe que não era alguém que estava atrás dos seus arquivos?
- Meus arquivos nem foram tocados, McGreavy
- Como pode saber disso? Nem mesmo olhou.
Judd foi até a parede do outro lado da sala. Apertou a parte inferior do painel e a parede se
abriu, revelando diversas prateleiras embutidas. Estavam cheias de fitas de gravação.
- Gravo todas as sessões com meus pacientes - explicou Judd. - E guardo as fitas aqui.
- Não poderiam ter torturado Carol numa tentativa de obrigá-la a dizer onde estavam as fitas?
- Não há nada nessas fitas que possa ter algum valor para alguém. Certamente ela foi
assassinada por algum outro motivo.
Judd olhou novamente para o corpo mutilado de Carol e sentiu-se dominado por uma raiva
cega e impotente.
- Vocês têm que descobrir quem fez isso!
- É justamente o que eu pretendo fazer - disse McGreavy, olhando fixamente para Judd.
Na rua deserta e varrida por um vento frio, em frente ao prédio em que ficava o consultório
de Judd, McGreavy disse a Angeli que levasse o médico de volta para casa.
- Tenho ainda um trabalho a fazer - informou McGreavy, virando-se em seguida para Judd.
- Boa noite, Doutor.
Judd ficou olhando o vulto corpulento e desajeitado descer a rua rapidamente.
- Vamos indo - disse Angeli. - Estou morrendo de frio.
Judd sentou-se no banco da frente, ao lado de Angeli, que imediatamente deu a partida.
- Tenho de ir falar com a família de Carol - disse Judd.
- Nós já estivemos lá.
Judd assentiu, cansado. Mesmo assim, ele queria falar com os pais de Carol, mas isso podia
esperar. Houve um grande silêncio. Judd indagou-se sobre qual seria o trabalho que McGreavy teria ido fazer àquela hora da madrugada. Como se lesse seus pensamentos, Angeli disse:
- McGreavy é um bom polícia. Ele acha sinceramente que Ziffren merecia a cadeira elétrica
por ter matado o seu companheiro.
- Ziffren era um desequilibrado mental.
Angeli sacudiu os ombros.
- Aceito a sua palavra, Doutor.
"Mas McGreavy jamais aceitará", pensou Judd. Ele pensou em Carol, recordando a sua
permanente jovialidade, a sua inteligência, o seu afeto, o orgulho que ela sentia do seu trabalho.
Percebeu então que Angeli estava-lhe dizendo alguma coisa e viu que haviam chegado ao prédio em que morava.
Cinco minutos depois Judd estava em seu apartamento. Não havia a menor possibilidade de
conseguir conciliar o sono. Ele serviu-se de um conhaque e foi para o escritório. Recordou-se da noite em que Carol ali entrara, nua e linda, esfregando o seu corpo quente e flexível contra o dele.
Judd bancara o frio e indiferente porque sabia que essa era a única forma de ajudá-la. Mas ela jamais soubera quanta força de vontade ele tivera que empregar para resistir ao desejo. Ou será que ela compreendera? Judd ergueu o copo e esvaziou-o de um só gole.
O necrotério municipal parecia igual a qualquer outro necrotério às três horas da madrugada.
A única diferença é que alguém pendurara na porta uma coroa de Natal. "Alguém dotado de muito espírito de Natal ou então com um senso de humor macabro", pensou McGreavy.
Ele esperou impacientemente no corredor até que a autópsia estivesse concluída. Quando o
legista o chamou, ele entrou na sala de autópsia, toda branca. O legista estava lavando as mãos numa pia enorme. Era um homem pequeno, de voz estridente, com movimentos rápidos e nervosos. Ele respondeu a todas as perguntas de McGreavy rapidamente, retirando-se logo em seguida. McGreavy ficou ali por mais alguns minutos, absorvido no que acabara de saber. Depois saiu para a noite gelada lá fora, à procura de um táxi. Não havia nenhum. "Os desgraçados devem estar todos de férias nas Bermudas", pensou McGreavy. Mas ele não podia ficar a madrugada inteira ali na rua, até congelar.
Viu uma radiopatrulha e fez sinal. Mostrou a sua identificação ao soldado que a estava dirigindo e ordenou-lhe que o levasse ao 19º Distrito. Era contra os regulamentos, mas que diabo! Afinal, ia ser uma longa noite.
Quando McGreavy entrou na delegacia, Angeli já o estava esperando.
- Eles já acabaram a autópsia de Carol Roberts - informou McGreavy.