— Nã me conheces? — perguntou a Arren com um largo sorriso e falando com o sotaque de Enlad. — Sará que nunca viste o tê tio antes?
Na corte de Berila, Arren vira feiticeiros mudar as feições quando mimavam o Feito de Morred e sabia que se tratava apenas de ilusão. Assim, manteve o sangue-frio e foi capaz de dizer:
— Ora pois que sim, mê ti Falcão!
Mas, enquanto o mago regateava com um guarda do porto o que este pedia para manter em doca e guardar o barco, Arren continuou a olhá-lo, para ficar bem certo de o reconhecer realmente. E ao olhar, a transformação começou a perturbá-lo mais em vez de menos. Era demasiado completa. Aquele não era de modo algum o Arquimago, não era sábio guia nem chefe coisa nenhuma. A paga do guarda do porto permaneceu alta e, ao pagar, o Gavião não parou de resmungar, nem mesmo quando se afastou com Arren.
— Este é um teste à minha paciência — dizia. — Ter de pagar àquele ladrão barrigudo para me guardar o barco! E isto quando um encantamento teria feito muito melhor trabalho! Mas pronto, é o que me custa o disfarce… E até me esqueci de falar como deve ser, nã foi mê sobrinho?
Iam caminhando por uma rua garrida, fedorenta e cheia de gente, ladeada por lojas que pouco mais eram que barracas e cujos donos permaneciam à entrada, rodeados por montes e grinaldas de mercadorias, proclamando em altos brados a beleza e barateza dos seus tachos, camisas, chapéus, pás, alfinetes, bolsas, chaleiras, cestos, ganchos de fogão, facas, cordas, ferrolhos, roupa de cama e toda e qualquer outra espécie de quinquilharia e tecidos.
— Isto é uma fera?
— Hãe! — fez o homem do nariz abatatado, inclinando a cabeça grisalha.
— Se isto é uma fêra, mê tio?
— Fêra? Nã, nã. Cá aqui, fazem isto o ano todo. Guarde lá os seus pastéis de pêxe, santinha, que eu já matê o bicho.
Entretanto, já Arren tentava livrar-se de um homem com um tabuleiro de pequenas vasilhas de cobre, que se lhe colara aos calcanhares, lamuriando:
— Comprai, experimentai, meu jovem e belo senhor, não vos vão deixar mal, dar-vos-ão um hálito tão suave como as rosas de Numima, e as mulheres encantar-se-ão convosco, experimentai meu jovem senhor do mar, meu jovem príncipe…
De imediato, o Gavião interpôs-se entre Arren e o bufarinheiro, perguntando:
— Que talismãs são esses?
— Não são talismãs! — choramingou o homem, encolhendo-se perante ele. — Eu não vendo talismãs, mestre do mar! Só uns xaropes para suavizar o hálito depois da bebida ou da raiz de hádzia… só xaropes, grande príncipe!
E agachou-se completamente nas pedras da rua, com o seu tabuleiro de frasquinhos a tinir e a chocalhar, e alguns deles mesmo a inclinarem-se de tal maneira que uma gota do líquido espesso que tinham dentro, rosa ou púrpura, escorreu para fora do gargalo.
Sem mais palavras o Gavião virou costas e seguiu em frente com Arren. Em breve as pessoas começavam a ser menos e as lojas tornaram-se de uma pobreza confrangedora, uns casinhotos ostentando como única mercadoria, este um punhado de pregos tortos, aquele uma mão de almofariz partida e aqueloutro uma velha escova de cardar. Esta pobreza desagradou menos a Arren que o resto. No lado mais rico da rua sentira-se chocado, sufocado, pela pressão das coisas a serem vendidas e das vozes a gritarem-lhe que comprasse, comprasse. E acima de tudo chocara-o a abjeção do bufarinheiro. Recordou as frescas e brilhantes ruas da sua cidade setentrional. Em Berila, nenhum homem se teria humilhado assim perante um estranho.
— Esta é uma gente baixa! — comentou.
— Por aqui, mê sobrinho — foi tudo o que obteve como resposta do companheiro. Voltaram para uma passagem entre paredes altas, vermelhas e sem janelas, que corriam ao longo da encosta, e atravessaram uma entrada em arco, engalanada com velhas e esfarrapadas flâmulas, saindo de novo para a luz do Sol num largo íngreme, outra praça de mercado, a abarrotar de tendas e quiosques, enxameada de gente e de moscas.
Ao longo dos lados do largo havia uma série de homens e mulheres, sentados ou deitados no chão, imóveis. As suas bocas tinham um estranho aspecto enegrecido, como se tivessem sido feridos, e ao redor dos seus lábios as moscas juntavam-se aos magotes como montes de uvas passas.
— Tantos… — soou a voz do Gavião, em tom baixo e precipitado, como se também ele tivesse sofrido um choque. Mas quando Arren olhou, havia apenas o rosto vulgar e bonacheão do robusto mercador Falcão, vazio de quaisquer preocupações.
— O que se passa com esta gente?
— Hádzia! Acalma e entorpece, deixando que o corpo se liberte da mente. E a mente vagueia livremente. Mas quando regressa ao corpo precisa de mais hádzia… E a ânsia cresce e a vida é curta, porque essa coisa é um veneno. Primeiro vem uma tremura, mais tarde paralisia e depois a morte.
Arren olhou para uma mulher que estava sentada com as costas apoiadas numa parede aquecida pelo sol. Erguera a mão como se tencionasse afastar as moscas da cara, mas a mão fez um movimento circular e sacudido, como se ela se tivesse esquecido completamente da sua intenção inicial e o movimento resultasse apenas de um repetido estremecer dos músculos. O gesto era como um encantamento vazio de todo o sentido, um esconjuro sem significado.
O Gavião olhava também para ela, inexpressivamente.
— Vem daí! — disse.
E abriu caminho através da praça e até uma tenda sombreada por um toldo. Riscas de cores avivadas pelo sol, verde, laranja, limão, carmim e azul, alongavam-se sobre tecidos, xales e cintos entretecidos em exposição, e dançavam, refletidas como um sem-fim de clarões nos pequenos espelhos que enfeitavam a alta e emplumada cabeleira da mulher que vendia a mercadoria exposta. Era grande, forte e forte era também a sua voz.
— Sedas, cetins, linhos, peles, feltros, lãs, velos de ovelha de Gont, gazes de Saul, sedas de Lorbanery! Ei, homens do Norte, larguem esses casacões. Não vêem o sol que faz? E que tal isto para levar às vossas raparigas lá na longínqua Havnor? Olhem-me para isto, seda do Sul, fina como a asa de uma borboleta de Maio!
Com mãos destras, abrira uma peça de seda finíssima, cor-de-rosa e salpicada com fios de prata.
— Nã, senhora, nã somos noivos de rainhas — disse o Falcão. Mas logo a voz da mulher se ergueu como um trovão.
— E então com que é que vestem as vossas mulheres, com serapilheira? Lona de velas? Gente mesquinha que não compra um pecinha de seda para uma pobre mulher que enregela nas neves eternas lá do Norte! Então e que tal este velo de Gont, para a ajudar a aquecer nas noites frias de Inverno?
E lançou por cima do balcão um grande quadrado de um pano creme e castanho, tecido com o pêlo sedoso das cabras das ilhas setentrionais. O falso mercador estendeu a mão, apalpou-o e teve um sorriso.
— Ei, és algum gontiano? — fez a voz retumbante e a cabeleira, agitando-se, lançou mil pontos coloridos a girar por cima do toldo e dos tecidos.
— Isto é trabalho das Andrades — retorquiu o Falcão. — Estás a ver. A largura do dedo só apanha quatro fios da urdideira. Os de Gont têm seis ou mais. Mas diz-me cá. Deixaste de fazer magia para vender quinquilharias? Quando por aqui passei, há uns anos, vi-te a tirar labaredas das orelhas às pessoas e depois transformavas as labaredas em pássaros e sinos dourados. Era um negócio bem melhor que este.
— Isso não era negócio nenhum — disse a enorme mulher e, por um instante, Arren notou os seus olhos, duros e firmes como ágatas, olhando-o e ao Falcão lá de dentro do brilho e agitação das suas penas oscilantes e relampejantes espelhos.
— Ah, mas se era bonito aquilo de tirar fogo das orelhas — insistiu o Falcão num tom de voz obstinado mas simplório.
— Tinha pensado em mostrá-lo aqui ao mê sobrinho.