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— Pois tanto melhor — replicou o mago, inflexível, mas mesmo assim com uma espécie de bom humor que apaziguou a zanga de Arren. E o certo é que ele ficara sobressaltado com a sua própria. Nunca pensara em falar assim ao Arquimago. Mas depois aquele era e não era o Arquimago, cuja voz era umas vezes a de um homem e outras a de outro, um estranho, alguém que não era de fiar.

— O que ele te disse faz algum sentido? — perguntou Arren, pois não lhe agradava nada ter de voltar àquele quarto sombrio por cima do rio fedorento. — Todas aquelas frioleiras acerca de estar vivo e morto, e de voltar com a cabeça cortada?

— Não sei se faz sentido. Eu queria falar com um feiticeiro que tivesse perdido o poder. Ele diz-me que não o perdeu, mas o deu… que o trocou. Mas por quê? Vida por vida, foi o que ele disse. Poder por poder. Não, não o entendo, mas vale a pena ouvi-lo.

O calmo raciocínio do Gavião envergonhou Arren anda mais. Considerou-se petulante e nervoso, como uma criança. O Lebre fascinara-o, mas agora que o fascínio se quebrara sentia uma espécie de enjôo doentio, como se tivesse comido alguma coisa estragada. Decidiu não voltar a falar até ter controlado o seu temperamento e, no momento seguinte, pousou mal o pé nos degraus desgastados, escorregou e recuperou o equilíbrio raspando a pele das mãos nas pedras.

— Amaldiçoada seja esta cidade nojenta! — lançou, enraivecido. E o mago replicou secamente:

— Não me parece que precise de ser amaldiçoada.

Havia realmente algo de errado na Cidade de Hort, de errado no próprio ar, pelo que se podia pensar muito seriamente que estava debaixo de uma maldição. E no entanto não se tratava de uma presença de qualquer espécie, antes de uma ausência, de um enfraquecimento de todas as qualidades, como uma doença que em breve infectasse também o espírito de qualquer visitante. Até o calor do Sol da tarde era doentio, demasiado pesado para Março. As praças e ruas agitavam-se de atividade e comércio, mas não havia ordem nem prosperidade. As mercadorias eram más, os preços altos e os mercados não eram seguros, nem para negociantes nem para compradores, pois estavam cheios de ladrões e quadrilhas de vadios. Poucas mulheres se viam nas ruas e as poucas que havia andavam em grupos. Era uma cidade sem lei nem governo. Falando com as pessoas, Arren e o Gavião em breve descobriram que não havia realmente conselho de cidadãos, presidente do município ou senhor na Cidade de Hort. Alguns dos que costumavam governar a cidade tinham morrido, outros resignado e outros ainda sido assassinados. Vários chefes lideravam os vários bairros da cidade, os guardas do porto ocupavam-se do embarcadouro e enchiam as algibeiras, e por aí adiante.

A cidade já não tinha centro algum. As pessoas, apesar de toda a sua febril atividade, pareciam não ter finalidade alguma. Dir-se-ia que os artesãos tinham perdido a vontade de trabalhar bem. Até os ladrões roubavam porque era tudo o que sabiam fazer. Todo o burburinho e brilho de um grande porto de mar estava presente, à superfície, mas em redor de tudo isso sentavam-se os comedores de hádzia, imóveis. E abaixo da superfície as coisas não pareciam totalmente reais, nem sequer os rostos, os sons, os cheiros. De vez em quando era como se se apagassem, durante aquela longa e quente tarde, enquanto o Gavião e Arren caminhavam pelas ruas, falando com este e com aquele. E apagavam-se realmente. Os toldos às riscas, as sujas pedras do chão, as paredes coloridas e toda a vivacidade do ser se perdia, deixando a cidade como algo visto em sonhos, vazia e lúgubre, sob a luz nevoenta do Sol.

Só no ponto mais alto da cidade, aonde se dirigiram para descansarem um pouco ao fim da tarde, houve uma interrupção naquela sensação doentia de sonho acordado.

— Esta não é uma cidade que dê sorte — dissera Gavião algumas horas atrás. E agora, após horas de um vaguear sem destino e de infrutíferas conversas com estranhos, tinha um ar cansado e carrancudo. O seu disfarce tinha-se desgastado um pouco e, através do rosto ilusório de mercador, descortinava-se uma certa dureza, um certo tom escuro. Arren não fora capaz de se libertar da sua irritabilidade da manhã. Sentaram-se na relva áspera do topo do monte, sob a folhagem de um bosque de árvores pendick, de folhas escuras e cheias de botões vermelhos, alguns dos quais já estavam abertos. Dali nada viam da cidade, para além dos telhados, descendo em múltiplos degraus até ao mar. A baía abria largamente os seus braços, de um azul-escuro e baço sob a neblina primaveril, apontando para o ar do horizonte. Não se viam linhas de demarcação nem fronteiras. Ficaram de olhos fitos naquele imenso espaço azul e a mente de Arren clareou, abrindo-se para receber e celebrar o mundo.

Quando foram beber a um pequeno ribeiro ali perto, que corria límpido sobre rochas castanhas, vindo da sua fonte nalgum jardim principesco na colina atrás deles, bebeu a longos haustos e meteu completamente a cabeça debaixo da água fria. Depois levantou-se e declamou os versos do Feito de Morred que diziam:

Louvadas são as Fontes de Xélieth, a harpa argêntea das águas, Mas abençoado seja em meu nome e para sempre este rio que apaziguou a minha sede!

O Gavião riu-se e também Arren riu. Sacudiu a cabeça como um cão e fez saltar em chuva brilhante a água dos cabelos, que voou clara na última luz dourada do Sol.

Mas tiveram de deixar o bosque e voltar a descer para as ruas da cidade. Depois de arranjarem de cear numa tenda que vendia bolos de peixe gordurosos, já a noite pesava no ar. A escuridão penetrava cedo nas ruelas estreitas.

— O melhor é irmos, rapaz — disse o Gavião.

— Para o barco? — perguntou Arren. Mas sabia que não se iam dirigir para o barco, e sim para a casa sobre o rio, para o terrível quarto, vazio e cheio de pó.

O Lebre esperava por eles à entrada da casa.

Acendeu uma candeia de azeite para lhes iluminar a subida pela negra escada. A minúscula chama tremia constantemente na mão do homem, lançando vastas e rápidas sombras pelas paredes acima.

Tinha arranjado outro saco de palha para os visitantes se sentarem, mas Arren escolheu antes um lugar no chão nu, junto à porta. Esta abria-se para fora e, para a guardar, ele deveria antes ter-se sentado no exterior, mas aquele vestíbulo escuro como breu era mais que o que ele podia suportar, além de que queria manter um olho no Lebre. A atenção do Gavião, provavelmente também os seus poderes, iam estar voltados para o que o Lebre tinha para lhe dizer ou mostrar. Cabia a Arren ficar atento a alguma velhacaria.

O Lebre estava agora mais direito e tremia menos, além de que limpara a boca e os dentes. De princípio, embora excitadamente, falou de maneira razoavelmente sensata. A luz da candeia, os seus olhos eram tão escuros que, como os dos animais, pareciam não ter branco. Discutiu vivamente com o Gavião, instando com ele para que comesse hádzia.

— Eu quero levar-te, levar-te comigo. Temos de seguir pelo mesmo caminho. Não falta muito para que eu vá, estejas pronto ou não. Tens de tomar a hádzia para me seguires.

— Acho que posso seguir-te.

— Não onde eu vou. Isto não é… de deitar encantamentos. — Não parecia capaz de dizer as palavras «feiticeiro» ou «feitiçaria». — Eu sei que tu és capaz de ir até ao… ao lugar, tu sabes, a parede. Mas não é por aí. É um caminho diferente.

— Se tu fores, posso seguir-te.

O Lebre sacudiu a cabeça. O seu belo rosto, agora uma ruína do que fora, estava afogueado. Olhava freqüentemente para Arren, como a incluí-lo na conversa, embora apenas falasse para o Gavião.

— Ouve. Há duas espécies de homens, não há? A nossa e o resto. Os… os dragões e os outros. Gente sem poder e só meia viva. Esses não contam. Não sabem o que sonham. Têm medo do escuro. Mas os outros, os senhores dos homens, não têm medo de penetrar na escuridão. Nós temos a força.