— Desde que saibamos os nomes das coisas.
— Mas os nomes, lá, não contam… aí é que está, aí é que está! Não é o que fazes, o que sabes, que precisas. Os encantamentos não servem de nada. Tens de esquecer isso tudo, deixar ir. E aí é que comer hádzia ajuda. Esquecemos os nomes, deixamos para trás a forma das coisas e vamos direitos à realidade. Agora já falta muito pouco para eu ir e, se queres saber para onde, devias fazer como eu te digo. E eu digo como ele diz. Tens de ser um senhor de homens para seres um senhor da vida. Tens de descobrir o segredo. Eu podia dizer-te o seu nome, mas o que é um nome? Um nome não é real, o real, o real para sempre. Os dragões não podem ir até lá. Os dragões morrem. Todos morrem. Esta noite comi tanta que nunca vais conseguir acompanhar-me. Não há vendas nos meus olhos. Onde eu me perco, podes guiar-me. Lembras-te qual é o segredo? Lembras-te? Não há morte. Não há morte… não! Acabou-se a cama suada, o caixão a apodrecer, acabou-se, nunca mais. O sangue seca como o rio seco e desaparece. Não há medo. Não há morte. Os nomes foram-se e as palavras e o medo, tudo se foi. Mostra-me onde é que eu me perco, mostra-me, senhor…
E assim prosseguiu num êxtase de palavras meio sufocadas que era como o entoar de um encantamento, mas onde não havia encantamento, nem unidade, nem sentido. Arren escutava, escutava, esforçando-se por compreender. Se ao menos pudesse compreender! O Gavião devia fazer como ele dizia e tomar a droga, pelo menos desta vez, para finalmente descobrir de que estava o Lebre a falar, o mistério que ele não queria ou não podia revelar. Senão, que estavam eles ali a fazer? Mas afinal (e Arren desviou os olhos do rosto extático do Lebre para o outro perfil) talvez o mago já tivesse compreendido… Duro como pedra, aquele perfil. Falcão, o mercador, desaparecera, fora olvidado. Era o mago, o Arquimago, que estava ali agora. A voz do Lebre não era já senão um trautear indistinto e, de pernas cruzadas, balançava o corpo para trás e para diante. O seu rosto tomara um ar desvairado, a boca amolecera. De frente para ele, à luz tênue mas firme da lamparina pousada no chão entre eles, o outro não dizia palavra, mas estendera o braço e pegara na mão do Lebre, como que a segurá-lo. Arren não o vira estender o braço. Havia vazios na ordem dos acontecimentos, vazios de inexistência… sonolência, devia ter sido. Por certo teriam passado horas, devia ser perto da meia-noite. Se adormecesse, seria também ele capaz de seguir o Lebre no seu sonho e chegar ao lugar, ao caminho secreto? Talvez pudesse. Agora parecia-lhe bem possível. Mas tinha de guardar a porta. Ele e o Gavião quase não tinham falado disso, mas estavam ambos cientes de que, ao fazê-lo voltar ali de noite, o Lebre poderia ter planejado alguma emboscada. Ele fora pirata, conhecia ladrões. Nada haviam combinado, mas Arren sabia que tinha de estar de guarda porque, enquanto fizesse aquela estranha viagem do espírito, o mago estaria indefeso. Mas, como um idiota, deixara a sua espada no barco e de que lhe poderia servir a faca se aquela porta de repente se abrisse por detrás dele? Mas isso não iria acontecer. Ele podia estar atento, à escuta. O Lebre já deixara de falar. Os dois homens mantinham um silêncio absoluto. Toda a casa estava em silêncio. Ninguém poderia subir aqueles degraus bamboleantes sem fazer algum ruído. E, se ouvisse barulho, ele podia falar, soltar um brado de aviso. Então o transe quebrar-se-ia, o Gavião voltar-se-ia para se defender e a Arren com o raio terrível que é a ira de um feiticeiro… Quando Arren se sentara junto da porta, o Gavião olhara-o, apenas um relance, com aprovação. Aprovação e confiança. Ele era o guarda. Não haveria perigo se permanecesse atento. Mas era difícil. Era difícil continuar a vigiar aqueles dois rostos, à pequena pérola de luz que era a chama da candeia entre eles, no chão. E agora silenciosos ambos, imóveis ambos, de olhos abertos mas sem verem a luz nem o quarto cheio de pó, sem verem o mundo, mas sim algum outro mundo de sonho ou de morte… Continuar a vigiá-los sem tentar segui-los…
E ali, na vasta, na seca escuridão, alguém se erguia, com um gesto de chamamento. Vem, disse ele, o alto senhor das sombras. Na sua mão segurava uma chama minúscula, não maior que uma pérola, e estendeu-a para Arren, oferecendo vida. Lentamente, Arren deu um passo em direção a ele, obedecendo.
4
LUZ DE MAGIA
Seca, a sua boca estava seca. E havia um sabor a poeira na sua língua, os seus lábios estavam cobertos de poeira.
Sem levantar a cabeça do chão, observou o jogo das sombras. Havia as sombras grandes que se moviam e inclinavam, aumentavam e encolhiam, e outras menos nítidas que corriam rápidas pelas paredes, pelo teto, troçando das outras. Havia uma sombra a um canto e uma sombra no chão, e nenhuma delas se movia.
A nuca começou a doer-lhe. Ao mesmo tempo, o que via tornou-se claro no seu espírito, como um só relâmpago, cristalizado num instante. O Lebre desabado a um canto com a cabeça nos joelhos, o Gavião estendido de costas, um homem ajoelhado sobre o Gavião, outro deitando moedas de ouro para dentro de uma bolsa, um terceiro de pé, a observar. O terceiro segurava uma lanterna numa das mãos e uma adaga na outra. A adaga de Arren.
Se falavam, não os ouvia. O que ouvia eram os seus próprios pensamentos, que lhe diziam o que fazer de imediato e sem hesitações. E logo lhes obedeceu. Rastejou em frente, muito lentamente, uns dois ou três pés, lançou a mão esquerda e apoderou-se da bolsa, pôs-se em pé de um salto e correu para as escadas soltando um grito rouco. Mergulhou escada abaixo na cega escuridão sem falhar um degrau, sem sequer os sentir debaixo dos pés, como se voasse. Irrompeu porta fora e penetrou, correndo a toda a velocidade, no escuro da noite.
Contra o fundo de estrelas, as casas erguiam-se como vultos negros. A luz das estrelas refletia-se tenuemente no rio, para a sua direita e, embora não conseguisse ver para onde o levavam as ruas, pelo menos dava pelos cruzamentos e podia virar e tornar mais difícil a perseguição. Porque o tinham seguido. Podia ouvi-los atrás de si, não muito longe. Estavam descalços e era mais fácil ouvir-lhes a respiração ofegante que as passadas. Se tivesse tido tempo, teria rido. Sabia finalmente o que era ser a caça em vez do caçador, a presa em vez do chefe da perseguição. Era estar só e estar livre. Obliquou para a direita e, baixando a cabeça, esquivou-se por uma ponte de parapeitos altos, deslizou para uma rua lateral, virou uma esquina, de volta à margem do rio e ao longo desta por um bocado, logo atravessando outra ponte. Os seus sapatos ressoavam nas pedras do chão, único som que se ouvia em toda a cidade. Fez uma pausa junto ao apoio da ponte para se descalçar mas os atacadores estavam cheios de nós e não despistara os perseguidores. A lanterna brilhou por um segundo do outro lado do rio. O som dos pés, abafado, pesado, rápido, aproximava-se. Não conseguia afastar-se deles. Só podia correr mais depressa, seguir em frente, manter-se adiante e afastá-los daquele quarto poeirento, lá longe…
Tinham-lhe tirado o casaco, juntamente com a adaga, e estava em mangas de camisa, leve e quente, a cabeça a andar à roda, e a dor na nuca a tornar-se aguda, cada vez mais aguda, com cada passada, e corria, e continuava a correr… A bolsa incomodava-o. Deitou-a subitamente para o chão e uma moeda de ouro saltou lá de dentro, batendo nas pedras com um tilintar sonoro.
— Aí vai o vosso dinheiro! — gritou, a voz rouca e arfante.
Continuou a correr. E de repente a rua acabou. Nem ruas laterais, nem estrelas à sua frente, um beco sem saída. Sem parar, voltou para trás e correu de encontro aos seus perseguidores. A lanterna balançou-lhe furiosamente à frente dos olhos e, enquanto se aproximava dos outros correndo, lançou-lhes um brado de desafio.
Havia uma lanterna, balançando para a frente e para trás diante dele, um tênue ponto de luz numa grande massa ondulante, cinzenta. Observou-a por muito tempo. Tornou-se mais vaga e, por fim, uma sombra passou diante dela e, depois de ter passado, a luz desaparecera. Durante um bocado lamentou a ausência da luz. Ou talvez se lamentasse a si próprio, porque sabia que tinha de acordar, agora.